Navegando na Formação

Carlos Fontes

Trabalho e Tempos Livres

  conceito de “tempos livres” emerge com a industrialização das sociedades contemporâneas, sendo por isso indissolúvel das transformações do trabalho, nomeadamente do trabalho assalariado e da redução do tempo que lhe é dedicado. Passa a ser entendido como o tempo que o trabalhador dispõe como seu, ocupando-o da forma como entende. É o seu tempo livre, por oposição ao que emprega ao serviço do patrão,  o seu tempo alienado.

O tempo livre dos assalariados decorria nas necessidades inerentes ao trabalho industrial. São conhecidas as repercussões psico-sociológicas da emergência da sociedade industrial, com a sua imposição de horários e cadências fixas na actividade produtiva.

A conquista de uma duração menor do trabalho diário foi desde logo importante para o equilíbrio psico-fisiológico dos trabalhadores. A limitação do tempo de trabalho tornou-se por isso uma ideia-força numa civilização industrializada.

            Era irreversível, também, porque a partir do momento em que os operários formavam uma parte importante de uma nação, tinha que se lhes dar tempo para consumirem alguns dos produtos que fabricavam. Continuar apenas a produzir não bastava, como o demonstrou a crise de 1929. A receita encontrada e aplicada em vários países, foi a de diminuir o horários de trabalho e expandir as férias, garantindo simultaneamente um rendimento mínimo de modo a manter e a reanimar o sistema produtivo. 

            Em volta da expansão dos tempos livres dos assalariados, tem-se escrito, desde o século XIX,  um vasto conjunto de obras que apontam para a inevitabilidade do surgimento de uma sociedade de tempos livres. O argumento mais difundido parte da  constatação que os avanços tecnológicos e os seus subsequentes aumentos de produtividade tornarão indispensável a diminuição da jornada de trabalho. Uns viram neste fenómeno o fim da actual sociedade capitalista, centrada na exploração do trabalho, outros apenas descobriram formas diversas de aumento dos níveis de consumo por parte da população mundial.

Paul Lafargue, por exemplo, foi um dos primeiro que demonstrou como as tecnologias já então existentes permitiam diminuir a jornada de trabalho para três horas, parecendo-lhe um absurdo todas reivindicações operárias que reclamavam por mais trabalho.  A verdadeira proliferação destas teorias ocorre, todavia só depois da 2ª. Guerra Mundial, sobretudo nos EUA.

Herbert Marcuse vislumbrou nos anos cinquenta que o aumento dos tempos livres, estava a subverter os fundamentos da sociedade capitalista ao difundir o princípio do prazer. Partindo da análise da mesma sociedade, Alvin Toffler descobria apenas o aparecimento de um novo tipo de consumidor, o “consumidor de cultura”.

Na Europa, Jean Fourastié prosseguiu uma análise mais quantitativa. Fazendo cálculos sobre a perspectiva de o trabalho humano se reduzir para 35 anos da vida humana, ou 40.000 horas, concluiu que se havia encerrado um ciclo da nossa civilização e entrado noutro marcado pela hegemonia dos tempos livres. À civilização do trabalho opunha-se agora a civilização do Ócio, à sociedade industrial sucedia agora a sociedade pós-industrial, a uma sociedade fundada na produção, uma sociedade de consumo.

É neste contexto que Joffre Dumazidier anuncia a emergente “civilização do lazer”, onde este ocupava o lugar central que antes era conferido ao trabalho. Anos depois,  Jean Rousselet fala já de uma alergia ao trabalho que se havia apossado da defunta civilização do trabalho.

            Negando ou aceitando como uma evidência o carácter central do trabalho nas actividades humanas, o trabalho continuava a ser o referencial a partir do qual tudo era valorado. O conceito dominante continuava a identificá-lo como um castigo, alienação ou exploração a que o homem era sujeito. O conceito de tempo livre, pelo contrário, surgia cada vez mais liberto destes estigmas, sendo associado a um tempo de prazer e criatividade. Partindo desta dicotomia, como um facto inultrapassável, alguns autores procuram relacionar as actividades exercidas nos tempos livres com as que os trabalhadores exercem no campo profissional. As hipóteses avançadas, em geral apontam para três tipos de relação: umas vezes elas funcionam como compensação face às actividades profissionais, outras limitam-se a reproduzi-las, outras ainda, são-lhe neutrais. Nesta matéria qualquer hipótese está todavia longe de reunir um consenso alargado. A questão de fundo persiste, pois, por mais que seja reduzida a jornada de trabalho, se em paralelo forem apenas valorizados os tempos livres, está-se no fundo a esvaziar de sentido o próprio tempo de trabalho, contribuindo desta forma para aumentar a sensação de alienação no período que lhe seja dedicado.

           Nos anos oitenta, face à progressiva industrialização dos tempos livres, mas sobretudo devido às profundas alterações que entretanto ocorreram no mundo do trabalho, implicando nomeadamente um maior investimento na escolaridade e na formação profissional por parte dos futuros e actuais trabalhadores a oposição entre tempos livres e trabalho acabou por se tornar equívoca. Face à precarização do trabalho e as contínuas mudanças nos conteúdos profissionais, passou a falar-se de um novo “paradigma” que colocou a centralidade nos indivíduos, para os quais deixou de fazer sentido a oposição tempos livres - trabalho. O essencial joga-se agora no modo como aprendem novos saberes e saberes fazer, umas vezes é a divertirem-se, outras a trabalharem, outras simultaneamente a trabalharem divertindo-se, pouco importa as circunstâncias, o fundamental é preparem-se para enfrentarem os desafios da sociedade moderna, como trabalhadores, consumidores ou cidadãos. Resta saber se não serão as exigências do trabalho moderno que determinam, em última instância, esta centralidade dos indivíduos. 

Mercantilização dos Tempos Livres

              Numa primeira fase, o aumento dos tempos livres dos trabalhadores assalariados foi encarado como um tempo socialmente produtivo. Reconhecia-se a sua necessidade não apenas para a recuperação psico-fisiológica dos trabalhadores, mas também para a descompressão social de populações ainda incipientemente disciplinadas para a produção industrial, reforçando simultaneamente os mecanismos do seu enraizamento. Alain Touraine, salientou como nas sociedades pouco industrializadas as actividades exteriores ao trabalho funcionavam no âmbito dos mecanismos de enraizamento Um dos melhores exemplos encontram-se nas festas campestres ou  profissionais. Estas cumpriam uma dupla função, como compensação para trabalho penoso ou para a miséria quotidiana, mas também como meios de reforço dos laços de ligação dos indivíduos a comunidades concretas. O conteúdo das actividades exteriores ao trabalho continuavam a estar ligado à vida profissional. Alguns sindicalistas aproveitam para estimularem a participação dos trabalhadores nas festas, como um modo de estes desenvolverem os seus hábitos de urbanidade e coesão de grupo. Em nome desta coesão, chegam, também, a condenar as diversões populares. O trabalho e os trabalhadores ainda eram a referência fundamental a partir da qual os discursos sobre os tempos livres eram desenvolvidos.

            O aumento  dos tempos livres implicou igualmente um fenómeno lateral de não menor importância, o aumento da mobilidade ligado ao lazer. Os “espaços livrescomeçam a ser apropriados, como foi o caso das praias, montanhas, o mar, ou dando-se novas funções aos espaços rurais, em ordem à ocupação dos tempos livres. O desenvolvimento dos transportes e dos meios de comunicação, em geral, ao transformarem  as distâncias - menos tempo de percursos e custos cada vez mais baixos- facilitaram a mobilidade das pessoas e bens. Deste modo, a mobilidade ligada aos tempos livres não apenas aumentou, mas principalmente diversificou-se, gerando igualmente uma maior diversificação dos espaços.

            Numa segunda fase, que ocorre a partir da 2ª metade do século XX, associada à consolidação da sociedade de massas, as actividades de tempos livres rompem as suas ligações com o mundo do trabalho, para se centrarem no consumo. O aumento da produtividade na maioria dos países ocidentais, trouxe consigo o aumento do rendimento familiar, o que permitiu expandir o consumo para níveis que não tem paralelo em qualquer outra época histórica. Não consumir tornou-se sinónimo de desperdício de tempo. Ora, quanto mais se consome, nomeadamente aparelhos para ganhar tempo, mais tempo se terá que gastar para os adquirir e manter. O processo é amplamente conhecido. O que nos interessa agora assinalar é que este fenómeno produziu também uma culturalização do consumo, isto é, o consumidor foi colocado perante um dispositivo mercantil urbano que transformou tudo em simulacros das próprias coisas. As suas relações com os objectos passaram a funcionar  segundo um paradigma que encontrou  no centro comercial a sua melhor configuração. Nele, o consumidor alterou  de forma radical hábitos seculares de relação com os produtos e bens culturais. A “ambiência” passou a contar tanto como os próprios produtos. Esta organiza-se de forma a gerar uma panóplia de desejos e diversões previamente estudados e permanentemente dinamizados. Nos centros comerciais esbateram-se as distinções entre a obra erudita e a característica do consumo de massas. Tudo é transformado em objectos para serem desfrutados pelo olhar e consumidos em função da sua significação.

            A sociedade de consumo criou uma ética própria para os consumidores, capaz de os impelir a reproduzirem, pelo consumo,  o sistema económico e produtivo que a gerou. Como escreve Jean Baudrillard:

            “O homem - ser consumidor considera-se como obrigado a gozar e como empresa de prazer e de satisfação, como determinado-a-ser-feliz, amoroso, adulador/adulado, sedutor/seduzido, participante, eufórico e dinâmico. Eís o princípio de maximação através da multiplicação dos contactos e das relações, por meio do uso intensivo de sinais e objectos, por  intermédio da exploração sistemática de todas as virtualidades do prazer”.

            Os apelos ao prazer tornaram-se o corolário dos apelos ao consumo, reificando o consumismo. Ao contrário dos valores anteriores para os quais o prazer era encarado negativamente (como desperdício de tempo, recursos, energias...), o consumidor actual é obrigado a gozar, a divertir-se para que a economia se desenvolva.

            É por isso que, para o desenvolvimento da sociedade, se tornou vital o aumento dos tempos livres, na medida que permitem igualmente aumentar as possibilidades de consumo de inutilidades e de experiências que proporcionam a descoberta de novos prazeres fundados no consumo. A necessidade de continuamente aumentar as ofertas de novos produtos de consumo, traduziu-se na própria expansão e diversificação das diversões de massas, nomeadamente do turismo, impondo um forte crescimento do sector terciário da economia. Doravante, o nível de desenvolvimento dos países passou a ser aferido pelo peso relativo deste sector.

            Nos anos 80, parece ter-se entrado numa nova fase, quando a diversão se tornou um valor hegemónico, à medida que a industrialização dos tempos livres se tornou uma realidade. As actividades lúdicas deixaram de ser exclusivas dos tempos livres, passaram a ser também integradas no âmbito de muitas actividades profissionais. Um número crescente de empresas passou a facultar, quando não a impor, a muitos dos seus funcionários uma ampla programação do seu tempo, incluindo actividades para os tempos de lazer. Neste grupo, poderiam ser apontadas não apenas as actividades de formação profissional, mas também, o sector em expansão das viagens de estudo (ou lazer) que são proporcionadas ao trabalhador ou que este faz por sua iniciativa de modo a actualizar os seus conhecimentos de forma a aumentar as suas capacidades no exercício de uma dada actividade profissional

Neste contexto, faz pouco sentido falar de trabalho, tempos livres ou de consumo, e provavelmente também, nem sequer podemos falar de diversão.  

Carlos Fontes

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