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conceito de “tempos livres” emerge com a industrialização das
sociedades contemporâneas, sendo por isso indissolúvel das
transformações do trabalho, nomeadamente do trabalho assalariado e
da redução do tempo que lhe é dedicado. Passa a ser entendido
como o tempo que o trabalhador dispõe como seu, ocupando-o da forma
como entende. É o seu tempo livre, por oposição ao que emprega ao
serviço do patrão, o
seu tempo alienado.
O tempo livre dos assalariados decorria nas necessidades
inerentes ao trabalho industrial. São conhecidas as repercussões
psico-sociológicas da emergência da sociedade industrial, com a
sua imposição de horários e cadências fixas na actividade
produtiva.
A conquista de uma duração menor do trabalho diário
foi desde logo importante para o equilíbrio psico-fisiológico dos
trabalhadores. A limitação do tempo de trabalho tornou-se por isso
uma ideia-força numa civilização industrializada.
Era irreversível, também,
porque a partir do momento em que os operários formavam uma parte
importante de uma nação, tinha que se lhes dar tempo para
consumirem alguns dos produtos que fabricavam. Continuar apenas a
produzir não bastava, como o demonstrou a crise de 1929. A receita
encontrada e aplicada em vários países, foi a de diminuir o horários
de trabalho e expandir as férias, garantindo simultaneamente um
rendimento mínimo de modo a manter e a reanimar o sistema
produtivo.
Em volta da expansão dos tempos livres dos assalariados,
tem-se escrito, desde o século XIX,
um vasto conjunto de obras que apontam para a inevitabilidade
do surgimento de uma sociedade de tempos livres. O argumento mais
difundido parte da constatação
que os avanços tecnológicos e os seus subsequentes aumentos de
produtividade tornarão indispensável a diminuição da jornada de
trabalho. Uns viram neste fenómeno o fim da actual sociedade
capitalista, centrada na exploração do trabalho, outros apenas
descobriram formas diversas de aumento dos níveis de consumo por
parte da população mundial.
Paul
Lafargue, por exemplo, foi um dos primeiro que demonstrou como
as tecnologias já então existentes permitiam diminuir a jornada de
trabalho para três horas, parecendo-lhe um absurdo todas reivindicações
operárias que reclamavam por mais trabalho.
A verdadeira proliferação destas teorias ocorre, todavia só
depois da 2ª. Guerra Mundial, sobretudo nos EUA.
Herbert
Marcuse vislumbrou nos anos cinquenta que o aumento dos tempos
livres, estava a subverter os fundamentos da sociedade capitalista
ao difundir o princípio do prazer. Partindo da análise da mesma
sociedade, Alvin Toffler
descobria apenas o aparecimento de um novo tipo de consumidor, o
“consumidor de cultura”.
Na Europa, Jean
Fourastiéuma análise
mais quantitativa. Fazendo cálculos sobre a perspectiva de o
trabalho humano se reduzir para 35 anos da vida humana, ou 40.000
horas, concluiu que se havia encerrado um ciclo da nossa civilização
e entrado noutro marcado pela hegemonia dos tempos livres. À
civilização do trabalho opunha-se agora a civilização do Ócio,
à sociedade industrial sucedia agora a sociedade pós-industrial, a
uma sociedade fundada na produção, uma sociedade de consumo.
É
neste contexto que Joffre Dumazidier
anuncia a emergente “civilização do lazer”, onde este ocupava
o lugar central que antes era conferido ao trabalho. Anos depois,
Jean Rousselet
fala já de uma alergia ao trabalho que se havia apossado da defunta
civilização do trabalho.
Negando ou aceitando como
uma evidência o carácter central do trabalho nas actividades
humanas, o trabalho continuava a ser o referencial a partir do qual
tudo era valorado. O conceito dominante continuava a identificá-lo
como um castigo, alienação ou exploração a que o homem era
sujeito. O conceito de tempo livre, pelo contrário, surgia cada vez
mais liberto destes estigmas, sendo associado a um tempo de prazer e
criatividade. Partindo desta dicotomia, como um facto inultrapassável,
alguns autores procuram relacionar as actividades exercidas nos
tempos livres com as que os trabalhadores exercem no campo
profissional. As hipóteses avançadas, em geral apontam para três
tipos de relação: umas vezes elas funcionam como compensação
face às actividades profissionais, outras limitam-se a
reproduzi-las, outras ainda, são-lhe neutrais. Nesta matéria
qualquer hipótese está todavia longe de reunir um consenso
alargado. A questão de fundo persiste, pois, por mais que seja
reduzida a jornada de trabalho, se em paralelo forem apenas
valorizados os tempos livres, está-se no fundo a esvaziar de
sentido o próprio tempo de trabalho, contribuindo desta forma para
aumentar a sensação de alienação no período que lhe seja
dedicado.
Nos anos oitenta, face à
progressiva industrialização dos tempos livres, mas sobretudo
devido às profundas alterações que entretanto ocorreram no mundo
do trabalho, implicando nomeadamente um maior investimento na
escolaridade e na formação profissional por parte dos futuros e
actuais trabalhadores a oposição entre tempos livres e trabalho
acabou por se tornar equívoca. Face à precarização do trabalho e
as contínuas mudanças nos conteúdos profissionais, passou a
falar-se de um novo “paradigma” que colocou a centralidade nos
indivíduos, para os quais deixou de fazer sentido a oposição
tempos livres - trabalho. O essencial joga-se agora no modo como
aprendem novos saberes e saberes fazer, umas vezes é a
divertirem-se, outras a trabalharem, outras simultaneamente a
trabalharem divertindo-se, pouco importa as circunstâncias, o
fundamental é preparem-se para enfrentarem os desafios da sociedade
moderna, como trabalhadores, consumidores ou cidadãos. Resta saber
se não serão as exigências do trabalho moderno que determinam, em
última instância, esta centralidade dos indivíduos.
Mercantilização
dos Tempos Livres
Numa primeira fase, o aumento dos tempos livres dos
trabalhadores assalariados foi encarado como um tempo
socialmente produtivo. Reconhecia-se a sua necessidade não
apenas para a recuperação psico-fisiológica dos trabalhadores,
mas também para a descompressão
social de populações ainda incipientemente disciplinadas para
a produção industrial, reforçando simultaneamente os mecanismos
do seu enraizamento. Alain Touraine, salientou como nas sociedades
pouco industrializadas as actividades exteriores ao trabalho
funcionavam no âmbito dos mecanismos de enraizamento Um dos
melhores exemplos encontram-se nas festas campestres ou
profissionais. Estas cumpriam uma dupla função, como
compensação para trabalho penoso ou para a miséria quotidiana,
mas também como meios de reforço dos laços de ligação dos indivíduos
a comunidades concretas. O conteúdo das actividades exteriores ao
trabalho continuavam a estar ligado à vida profissional. Alguns
sindicalistas aproveitam para estimularem a participação dos
trabalhadores nas festas, como um modo de estes desenvolverem os
seus hábitos de urbanidade e coesão de grupo. Em nome desta coesão,
chegam, também, a condenar as diversões populares. O trabalho e os
trabalhadores ainda eram a referência fundamental a partir da qual
os discursos sobre os tempos livres eram desenvolvidos.
O aumento
dos tempos livres implicou igualmente um fenómeno lateral de
não menor importância, o aumento
da mobilidade ligado ao lazer.
Os “espaços livres” começam
a ser apropriados, como foi o caso das praias, montanhas, o mar, ou
dando-se novas funções aos espaços rurais, em ordem à ocupação
dos tempos livres. O desenvolvimento dos transportes e dos meios de
comunicação, em geral, ao transformarem
as distâncias - menos tempo de percursos e custos cada vez
mais baixos- facilitaram a mobilidade das pessoas e bens. Deste
modo, a mobilidade ligada aos tempos livres não apenas aumentou,
mas principalmente diversificou-se, gerando igualmente uma maior
diversificação dos espaços.
Numa segunda fase, que
ocorre a partir da 2ª metade do século XX, associada à consolidação
da sociedade de massas,
as actividades de tempos livres rompem as suas ligações com o
mundo do trabalho, para se centrarem no consumo.
O aumento da produtividade na maioria dos países ocidentais,
trouxe consigo o aumento do rendimento familiar, o que permitiu
expandir o consumo para níveis que não tem paralelo em qualquer
outra época histórica. Não consumir tornou-se sinónimo de
desperdício de tempo. Ora, quanto mais se consome, nomeadamente
aparelhos para ganhar tempo, mais tempo se terá que gastar para os
adquirir e manter. O processo é amplamente conhecido. O que nos
interessa agora assinalar é que este fenómeno produziu também uma
culturalização do consumo, isto é, o consumidor foi colocado
perante um dispositivo mercantil urbano que transformou tudo em
simulacros das próprias coisas. As suas relações com os objectos
passaram a funcionar segundo
um paradigma que encontrou no
centro comercial a sua melhor configuração. Nele, o consumidor
alterou de forma
radical hábitos seculares de relação com os produtos e bens
culturais. A “ambiência”
passou a contar tanto como os próprios produtos. Esta organiza-se
de forma a gerar uma panóplia
de desejos e diversões previamente estudados e permanentemente
dinamizados. Nos centros comerciais esbateram-se as distinções
entre a obra erudita e a característica do consumo de massas. Tudo
é transformado em objectos para serem desfrutados pelo olhar e
consumidos em função da sua significação.
A sociedade de consumo
criou uma ética própria para os consumidores, capaz de os impelir
a reproduzirem, pelo consumo, o
sistema económico e produtivo que a gerou. Como escreve
Jean Baudrillard:
“O homem - ser
consumidor considera-se como obrigado
a gozar e como empresa de
prazer e de satisfação, como determinado-a-ser-feliz, amoroso,
adulador/adulado, sedutor/seduzido, participante, eufórico e dinâmico.
Eís o princípio de maximação através da multiplicação dos
contactos e das relações, por meio do uso intensivo de sinais e
objectos, por intermédio
da exploração sistemática de todas as virtualidades do prazer”.
Os apelos ao prazer
tornaram-se o corolário dos apelos ao consumo, reificando o
consumismo. Ao contrário dos valores anteriores para os quais o
prazer era encarado negativamente (como desperdício de tempo,
recursos, energias...), o consumidor actual é obrigado a gozar, a
divertir-se para que a economia se desenvolva.
É por
isso que, para o desenvolvimento da sociedade, se tornou vital o
aumento dos tempos livres, na medida que permitem igualmente
aumentar as possibilidades de consumo de inutilidades e de experiências
que proporcionam a descoberta de novos prazeres fundados no consumo.
A necessidade de continuamente aumentar as ofertas de novos produtos
de consumo, traduziu-se na própria expansão e diversificação das
diversões de massas, nomeadamente do turismo, impondo um forte
crescimento do sector terciário da economia. Doravante, o nível de
desenvolvimento dos países passou a ser aferido pelo peso relativo
deste sector.
Nos
anos 80, parece ter-se
entrado numa nova fase, quando a diversão se tornou um valor hegemónico,
à medida que a industrialização dos tempos livres se tornou uma
realidade. As
actividades lúdicas deixaram de ser exclusivas dos tempos livres,
passaram a ser também integradas no âmbito de muitas actividades
profissionais. Um número crescente de empresas passou a facultar,
quando não a impor, a muitos dos seus funcionários uma ampla
programação do seu tempo, incluindo actividades para os tempos de
lazer. Neste grupo, poderiam ser apontadas não apenas as
actividades de formação profissional, mas também, o sector em
expansão das viagens de estudo (ou lazer) que são proporcionadas
ao trabalhador ou que este faz por sua iniciativa de modo a
actualizar os seus conhecimentos de forma a aumentar as suas
capacidades no exercício de uma dada actividade profissional
Neste
contexto, faz pouco sentido falar de trabalho, tempos livres ou de
consumo, e provavelmente também, nem sequer podemos falar de diversão.
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