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História da Formação Profissional e da Educação em Portugal

Carlos Fontes

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Idade Contemporânea - II - 2ª. República (1926-1948)

Culto das Elites

 O regime saído do golpe militar de 1926, não parece ter encarado de modo particular o problema da f.p. esteve sempre imune ás grandes transformações que nesta matéria se passaram em inúmeros outros países como a Espanha, França e Brasil, para só citar aqueles que ao longo dos anos nos tem servido de referencia. As raízes profundas desta atitude prendem-se com as grandes opções de fundo do regime, que encarou sempre o operariado como força bruta que não necessitava de qualquer instrução especial, concentrando a sua atenção na formação das "elites".

     Em 1933 António de Oliveira Salazar, numa célebre entrevista a António Ferro, reafirma a importância das elites para o regime. Mas o assunto pouco o ocupou. Outros o fizeram por ele, como Marcelo Caetano.

     Para este corifeu do regime corporativo, a questão das elites devia ser enquadrada nos três grandes princípios do regime[1]

     1.Os interesses individuais deveriam subordinarem-se aos interesses corporativos, que os ajusta ao interesse regional e nacional. Mas se a corporação é distinta do Estado, autónoma, ela não deixa de possuir elementos do Estado que a corrigem a cada momento na sua acção, evitando os seus desvios ( pag25).

        2. A iniciativa individual ,enquadrada pelas corporações deveria ser por sua vez " corrigida pela experiencia dos séculos"( pag.29). A Tradição é o grande critério que permite aferir o progresso, filtrando nele tudo o que é espúrio aos interesses corporativos. A rotina poderia ser combatida, assim  como se ensinar novas técnicas e métodos de trabalho  menos penosos e mais produtivos , mas acima de tudo a tradição deve imperar:

       "Deve-se respeitar , conservar e auxiliar aquilo que é produto de um ajustamento espontâneo  consolidado com o decorrer dos tempos" ( pag.29).

       A fonte da tradição nacional não reside  contudo na cidade, mas nos campos, nas aldeias. Aí se pode e deve encontrar os modelos para a produção industrial moderna . Afim de  ilustrar esta tese , este ideólogo do corporativismo recorre á obra de Orlando Ribeiro, e cita-o num texto que é bem o retrato de uma ideologia voltada para o passado:

       "Há alguns anos havia ( nos concelhos da Serra da Estrela) muitas casas que possuíam teares e fabricavam grandes quantidades de pano, que depois eram compradas pelas fábricas. A organização actual do trabalho , a pretexto de maior facilidade de fiscalização, de higiene ou de outras razões acabou com a industria no domicilio para concentra-la toda na oficina. Erro grave. O tear caseiro , manejado a maior parte das vezes por mulheres, era um suplemento a juntar aos produtos da terra ou do rebanho: de modo nenhum ocupação exclusiva ou dominante. As crianças eram educadas na tradição familiar do trabalho domestico e cedo se tornavam bons operários, sem deixarem de ser pastores ou trabalhadores da terra. Esta classe mista de artifices e rurais continha em si reservas de mão-de-obra intermitente que podia ser aproveitada nos altos e baixos inevitáveis  da produção industrial".  

              Durante os anos trinta e quarenta, este imaginário rural esteve sempre presente na abordagem dos modelos de formação para o operariado. A Idade média, como arquétipo da ruralidade  era a grande fonte de inspiração que os historiadores e etnólogos do regime procuravam enaltecer nas suas virtudes [2].

        3. Mas a tradição assim apresentada exige uma elite que seja capaz de conduzir um vasto rebanho virado para o passado, procurando reconstituir as corporações e aplicar nos nossos dias os métodos de trabalho próprios de um  mundo feudal. Se a Constituição de 1933 consagrou o Corporativismo, ela não o estabeleceu. Faltou-lhe a Elite segundo Marcelo Caetano.

        "O maior erro que se cometeu foi entregar a orientação dos organismos corporativos a pessoas ignorantes do novo espirito que se queria difundir"( pag.32).

        Para superar esta situação a única saída era afinal fazer o que os franceses vinham fazendo : formar dirigentes.

        "A grande tarefa da hora presente é a de educar. Preparar chefes para todas as actividades e para todos os escalões sociais: chefes dos serviços públicos, chefes da agricultura, chefes da industria, chefes do comércio, chefes dos patrões, chefes dos operários, chefes do técnicos... homens que saibam o que querem e que saibam orientar e conduzir os outros" (pag.34).

         Sem esta "escol" o regime corporativo jamais se implantaria . O Império Colonial exigia igualmente dirigentes á altura , para não se repetirem os mesmos erros do passado. Todo o sistema de ensino deveria ser subordinado a este ideal, nada mais contava:

       "Não se ensina por ensinar. Ensina-se e forma-se para servir as necessidades fundamentais da grei e os seus mais altos ideais!"[3].

      Nos anos quarenta o desafio maior do ensino técnico, não é formar quadros para as industriais do pais, mas sim formar dirigentes para o "ultramar português":

     "É na verdade indispensável que possamos fornecer ao Império técnicos cada vez mais numerosos e mais competentes.

     " Se há continente onde a técnica tenha papel primacial a desempenhar, é o africano.

     "Graças á técnica moderna , a natureza transforma-se , as dificuldades cedem, arracam-se as riquezas do solo, preservam-se os homens das inclemências do meio.

    " Médicos, engenheiros, agrónomos, veterinários, silvicultores, condutores , regentes agrícolas, enfermeiros, capatazes... são os quadros indispensáveis da moderna  acção ultramarina, os novos pioneiros da conquista da terra , os bandeirantes da penetração em profundidade -, conquista e penetração  em dimensão diferentes dos antigos , porque se trata agora de tornar util , rendosa, habitável, amiga, a terra já dominada e pacificada pelos viajantes, pelos missionários , e pelos soldados"[4].

       Com este quadro ideológico dificilmente o regime encontra na formação profissional  qualquer utilidade para o pais. O seu maior problema de fundo  em matéria laboral não era criar condições para aumentar a produção e melhor a qualidade dos produtos ou serviços, mas apenas  evitar desemprego; Para isso apoiou as actividades de mão-de-obra intensiva numa escala familiar, evitou a entrada das mulheres no mercado de trabalho, estimulou o subemprego, e condicionou toda a actividade produtiva do pais a uma legislação muito rígida. O proteccionismo estatal imperava em toda a sociedade.  O ideal dos "regimentos corporativos" estava afinal aqui bem vivo.

Elites e Analfabetos

 

O Culto das Elites traduziu-se numa desvalorização da educação de base da população. Como tem sido posto em destaque, logo após o 28 de Maio de 1926, discute-se mesmo a importância do analfabetismo para a sociedade portuguesa. Escrevia em 1927 Virginia de Castro e Almeida:

      "Sabendo ler e escrever nasceu-lhes ambições: querem ir para as cidades ser marçanos, caixeiros, senhores; (...) largam a enxada, desinteressam-se  da terra e só tem uma ambição : ser empregados públicos".

      O jornal As Novidades, em 1930, no mesmo tom comentava:

      " depois de ter decorado todas as definições que enchem os livros escolares, (...) o pequeno "doutor" sente-se logo fadado pelo menos para regedor ; ou, se as suas ambições tomam um rumo mais utilitário, para aprendiz de caixeiro ou de funcionário publico em qualquer repartição concelhia".

       Esta atitude gera a crença de que a instrução dos operários nada pode acrescentar de significativo ao rendimento das empresas. Em 1935, "Diversos industriais  portugueses , ouvidos pelo ministro da Educação Nacional acerca da natureza do ensino a ministrar aos operários , responderam sem  hesitações , não encontrar o mínimo de inconveniente em recrutar para o trabalho das suas oficinas e fabricas operários analfabetos"( in, E T n.14,1953: 730 )

        Em 1942, Alvaro  Ribeiro ( in, O Problema  da Filosofia Portuguesa, Editorial Inquérito, Lda ), teoriza mesmo a inevitabilidade desta massa de ignorantes, para o bem de uma ordem social superior. A formação das elites deveria de estar acima de qualquer preocupação produtiva:

       "Vem a propósito dizer que a situação se torna mais antipedagógica quando o aluno do curso superior é obrigado a dedicar a maioria do esforço e do tempo ao exercício de qualquer profissão. O trabalho profissional dificulta a actividade espiritual, e sempre se reconheceu a conveniência de afastar da clerisia as preocupações económicas".

        "Afirma Aristóteles que o Egipto foi o berço da matemática em consequência do ócio que ali usufruia a casta sacerdotal; e refere-se também ao aviltamento que  resulta do trabalho efectuado em proveito de outrem, do negocio, dado que este é uma oposição violenta á natural tendência do homem para a virtude e para a liberdade".

     E em abono da sua tese, Alvaro Ribeiro, cita Schopenhauer, afirmando que "a humanidade , com excepção de uma parte extremamente pequena, foi sempre e terá de ficar sempre inculta, porque o excesso de trabalho corporal indispensável ao todo não permite a cultura do espirito".

       Estas teorias assentavam numa negra realidade: saber ler era um privilégio de apenas metade dos adultos em Portugal nos anos quarenta. No inicio da década de cinquenta, por exemplo, as estatísticas mostravam haver no continente e ilhas perto de 3 milhões de analfabetos entre a população de idade superior a 7 anos, num total de 7 milhões de habitantes, o que representava uma taxa de 40,4%. Se considerasse-mos apenas os maiores de 20 anos, a taxa subia para os 46% !

       Em 1952, no preambulo ao decreto-lei n.38 968, que instituía o "Plano de Educação Popular" atribuía  o analfabetismo reinante em Portugal a uma característica do povo do português : "O analfabetismo , mormente entre as populações rurais, é devido a circunstancias de diversa natureza mas a sua mais funda razão de ser reside, como já alguém salientou, no facto de o nosso povo, pela sua riqueza intuitiva, pelas condições da sua existência e da sua actividade, não sentir necessidade de saber ler".

      Nos anos sessenta, aquando da criação do IFPA, as únicas habilitações exigidas aos formandos eram apenas as de saberem ler, escrever e contar, e assim prosseguiu até 1974.

 

Crítica das Elites

Muitas vozes isoladas desde 1926 começam a surgir criticando abertamente as repercussões destas teorias no campo educativo:  Oliveira Guimarães[5] e Faria de Vasconcelos, director do IOP foram pioneiros neste combate. Este último, na esteira do próprio Director-Geral do Ensino Tecnico , Francisco J. Nobre Guedes, põe em confronto as preocupações do regime com um ensino de elites, e aquelas que dedicava ao ensino profissional:

      "Não chega a  metade do que gasta com o ensino secundário e superior "Liberal" aquilo que se despende com todos os graus, elementar, secundário e superior do ensino técnico-agricola, comercial , Industrial e profissional. Quer dizer : tem-se procedido como se o nosso exercito social de trabalho não devesse compor-se senão de generais e oficiais de uma só arma, que logicamente deve ser menos numerosa, e pudesse dispor de um numeroso insignificante de subalternos e de soldados qualificados de todas as outras armas -- as profissões usuais da agricultura, do comércio e da Industria".

      No interior do próprio regime  outras vozes de erguiam mostrando o desfasamento destas teorias face ás exigências do mundo moderno. Durante o Congresso do Mundo Português, em 1940, José de Matos Braamcamp, proferia uma comunicação deslocada do contexto, com o curioso titulo de "Educação Simultânea da População e do Fomento Económico do Pais bem como da Higiene Nacional , pelo Uso do Frio Artificial Devidamente Coordenado". O autor afirma claramente que as novas tecnologias alimentares, como o frio artificial, como as exigências internacionais em matéria de normalização não se podiam resolver apenas através do trabalho braçal, exigem cada vez maiores qualificações profissionais, uma maior escolaridade de base da população, resultando dai não a miséria, mas a prosperidade das nações, e de que a panaceia  dos nacionalismos nada contribuiria para tal.

      "A função do trabalho , hoje baseada indiscutivelmente em noções cientificas do trabalho ( e não já somente em praticas manuais, e em competência rotineira) aparece com uma alta dignificação das classes trabalhadoras, incluindo as médias, que se torna evidente a necessidade fundamental de consolidar a actividade do mundo pela segurança das condições de existência dessas classes. O colossal aumento que se dará do seu poder de compra redundará em beneficio de todas as classes produtoras e distribuidoras , agricultura, industria, comercio, finança, seguros, transportes. Será necessário a extensão rápida da educação geral da população adultas, dando-lhes condições com que eles colham conhecimentos elementares uteis, técnicos, e cientificos para orientarem a sua própria actividade imediata e para dirigirem a educação dos seus filhos eficazmente , na elevação dessa actividade. Isso envolve adaptações económicas e também sociais, mas que estas não podem assustar ninguém que tenha visto a prosperidade que dai tem resultado para todas as classes, desde que todas cumpram a sua função própria" ( Com. Mundo Port., Vol. XVIII, pág.867)

        Em 1947, abre-se uma ruptura com estas concepções no interior do regime. O Relatório de 1947 sobre o Ensino Tecnico-Profissional, critica abertamente esta politica. Segundo ele, estas ideias são uma "Perigosa ilusão, fonte de trágicos desastres". Porque partiam do pressuposto que "a vida da Nação pode assentar num sistema de ensino apenas atento á formação dos quadros dirigentes, ainda que pudesse fornece-los da mais alta qualidade e em numero tal que os seus componentes se vissem forçados a aceitar, embora de mau humor, as funções subalternas  estariam em desacordo com o grau de preparação exigido por aqueles". Esta politica, afirma-se no Relatório, só poderia persistir apoiada num reforçado proteccionismo económico, mas que teria como consequência a manutenção de um parque industrial assente em máquinas- velhas e em métodos arcaicos de trabalho. E sobretudo, num atraso sempre crescente do pais em relação ás outras nações industrializadas. Para ultrapassar esta situação gravíssima a médio e longo prazo, haveria que proceder a uma formação equilibrada a todos os níveis, começando por abolir as altas taxas de analfabetismo do pais, sem o qual qualquer reforma educativa estaria voltada ao fracasso.

 

    Em construção !

  Carlos Fontes

Navegando na Educação

Notas:

 [1]. Marcelo Caetano, A Revolução Corporativa, Lisboa,1941

    [2]. Datam deste periodo alguns dos mais importantes trabalhos sobre as corporações medievais e as formas tradicionais de aprendizagem. Obras que ainda hoje constituem sólidas referencias;

    [3]. Marcelo Caetano, in, Portugal Imperial, Leituras para o Ensino Tecnico Profissional, Santos Pinheiro, Livraria  Bertrand.

    [4]. Marcelo Caetano, in Portugal Imperial , Santos Pinheiro,Lisboa

    [5]. Oliveira  Guimarães, Da Erronea concepção da "elite" em Portugal e da consequente desorganização do nosso ensino, in, Arquivo Pedagógico, Coimbra,1927, vol. 1,pág.80 e segs.