As Tribos da Cultura

 

1. Cada novo governo é indissociável de uma longa lista de novos dirigentes, assessores e colaboradores que na Administração Pública procuram imprimir as novas orientações políticas de que são protagonistas. O Ministério da Cultura não constituiu, neste contexto, qualquer excepção. O que será talvez uma novidade é o facto das nomeações desde Outubro de 1995 nele ocorreram terem suscitado inúmeros comentários, nomeadamente sobre os critérios que às mesmas terão presidido.

1.1.Para alguns comentadores, mais do que escolhas partidárias o que prevaleceu foram opções de natureza familiar. Facto que já na antiga SEC era facilmente observável em alguns organismos, onde existiam laços familiares entre uma grande percentagem dos seus dirigentes e funcionários.

1.2.A própria quantidade das nomeações tem suscitado também abundantes reparos, sendo mesmo este ministério apontado como um caso excepcional em toda a administração pública.

1.3. Os casos mais evidentes desta situação foram as  nomeações irregulares para cargos de dirigentes. Das 96 nomeações feitas até 7 de Julho de 1997, o Ministério da Cultura deveria ter posto a concurso 74, mas não fez. As razões porque não o fez são mais profundas do que os meros arranjos políticos do momento. 

2. Num estudo antropológico que fez escola nos anos cinquenta, definia-se com rigor o aparecimento de novas tribos nas cidades e nas organizações. Todas elas comungam de rituais e desenvolvem no seu interior um imaginário que permite a identidade e sobrevivência dos seus membros face à investida de rivais. Apesar das rivalidades entre os seus membros, reagem em bloco para a sua própria sobrevivência enquanto grupo. Muitos dos comportamentos organizacionais só se podem entender à luz deste modelo. O Ministério da Cultura, pela sua função eminentemente ideológica, reúne as condições ideais para este tipo de observação das novas tribos urbanas e organizacionais. Estas tribos que povoam o Ministério da Cultura estão longe de se circunscreverem  ao funcionalismo público, pelo contrário, agregam numa rede complexa de interesses inúmeros membros particulares que participam de uma forma ou outra em acções colectivas.  

A pluralidade dos organismos que constituem o Ministério da Cultura, e os múltiplos grupos que dele se alimentam, são um excelente campo de observação da distribuição territorial das diversas tribos, dos seus confrontos internos pela sua supremacia ou simplesmente pela manutenção dos respectivos territórios. Há tribos antigas, como a dos arqueólogos, mas também as há muito recentes como a dos universitários.   

3. A Tribo da "Animação Cultural" foi-se constituindo em volta da Direcção-Geral de Acção Cultural. Teve o seu período áureo entre 1975 e 1981, tendo como referência principal os "centros culturais". Esta tribo, ramifica-se depois na tribo do teatro, e na mais discreta tribo da música...

4. A tribo do teatro instalou-se em 1974, e é essencialmente constituída por actores, críticos, funcionários, ligados ao denominado "teatro independente". O seu período de domínio ocorreu entre 1974-1980. Esta tribo é um exemplo típico de como as fronteiras entre o público e o particular, são no domínio da cultura muito fluídas.

5. A tribo dos arqueólogos é a mais antiga, data do século XIX. Ligados a mecenas e a câmaras municipais, a sua visibilidade pública foi insignificante até aos anos oitenta. Claudio Torres, em Mértola foi o primeiro que trouxe a arqueologia para a comunicação social, ao articulá-la com projectos de desenvolvimento local. Em 1994, a pretexto das  gravuras do Vale do Côa, os arqueólogos surgem em força, reclamando, em grupo, um espaço mediático que nunca tiveram no campo da cultura. 

6. A tribo dos conservadores de museus já viveu melhores dias. O seu poder nos museus foi durante décadas baseado na sua competência técnica especifica na preservação das peças. Hoje quando se avalia a sua acção à frente dos principais museus do país, ninguém pode deixar de colocar a questão se um outro tipo de gestores não fariam um melhor trabalho. Veja-se o caso do Museu Nacional de Arte Antiga.  

7. A tribo dos bibliotecários e arquivistas embora seja enorme, é todavia demasiado fechada sobre si própria, o que torna a sua afirmação como grupo sempre problemática.

8. A tribo do cineastas constituiu, com a do teatro, outras das tribos que se mantém pela sua capacidade de reclamarem junto do Estado o seu quinhão no orçamento do Estado. O seu período mítico foi o dos cine-clubes no anterior e o pós 25 de Abril. As televisões privadas, e depois o multimédia nos anos noventa parece que tiveram sobre esta tribo um efeito devastador na sua acção colectiva.

9. A tribo do livro. A rede de leitura pública, a partir de 1986, permitiu atirar esta tribo para um plano cimeiro na cultura.

10. A tribo dos universitários é relativamente recente. Algumas áreas, como a do património e dos arquivos foram dos primeiros a chamar para dirigentes de topo docentes universitários. O actual ministro, teve o mérito de ter contribuído de forma decisiva para a sua instalação.

Para além desta referências básicas, haverá que prosseguir na identificação em cada uma das tribos dos momentos simbólicos, figuras de referência, formas de afirmação do grupo, etc.

Carlos Fontes

1997.6.30


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