A Reforma do Fundo de Fomento Cultural

A reforma do Saco Azul

 

1. O actual governo, na área da Cultura, colocou a tónica da sua acção na definição de critérios para distribuição de subsídios, em vez de a ter posto na elaboração de políticas de coordenação dos incentivos á produção cultural. Desta forma manteve a pulverização de entidades públicas que se servem destes como um expediente para alimentar clientelas ou calarem vozes incómodas.

Há cerca de dois anos o deputado Fernando Pereira Marques, o mesmo que hoje preside á Subcomissão de Cultura da Assembleia da República, denunciava a ausência de qualquer coordenação dos organismos do Estado, nos investimentos feitos em prol da cultura. Na sua investigação não descobriu qualquer princípio de racionalidade ou rentabilidade que justificasse esta situação.

É praticamente infindável a lista das entidades que participam nestas atribuições, de forma pontual ou com carácter sistemático, estando a mesma longe de se restringir ao Ministério da Cultura, câmaras municipais ou governos civis.

A criação de subsídio-dependentes, sustento da pedinchice nacional, faz parte integrante dos hábitos da nossa administração pública. Depois do 25 de Abril de 1974 conheceu, inclusive, um grande incremento. Desde então qualquer organismo do Estado arroga-se o dever de dar o seu contributo. Neste caos, grupos especializados na caça a subsídios tiram há muito proveito dos conhecimentos que nela cultivam para desespero dos que, embora promotores de meritórias iniciativas, acabam por ficar de fora da mesa do orçamento.

2. O Ministério da Cultura é neste capítulo paradigmático. Aqui a confusão é mais que muita. Qualquer investigador, perde-se nos meandros dos seus serviços quando procura saber quem subsidiou o quê. Não raro um projecto é subsidiado por mais de uma entidade, sem que seja fornecida qualquer informação que permita o cruzamento dos dados, muito menos a sua sistematização. Do passado se queixam os actuais dirigentes, mas vão prosseguindo na mesma prática. É que rapidamente se aperceberam das vantagens do sistema: ele permite divulgar, de acordo com os interesses do momento, valores variáveis dos subsídios atribuídos a uma dada entidade, preservando num círculo restrito a informação do valor real efectivamente disponibilizado. Desengane-se quem procure esclarecimento sobre o assunto nas listagens de subsídios publicadas na IIª série do Diário da República. O que é publicado, sem qualquer critério, não visa a informação, mas a ocultação.

O problema não é novo.

Desde os anos quarenta que, no quadro do antigo Secretariado Nacional de Informação (SNI) e depois na Secretaria de Estado de Informação e Turismo (SEIT), se procurou disciplinar esta atribuição de subsídios, instituindo diversos Fundos destinados a apoiar, por exemplo, o Cinema, o Teatro e as actividades culturais em geral. Na gestão dos mesmos participaram sempre entidades exteriores ao próprio Estado. Curiosamente depois do 25 de Abril, a sua gestão foi ficando reduzida a directores-gerais, numa lógica de progressivo secretismo.

O Fundo de Cinema Nacional, criado em 1948 (Lei 2.027, de 18 de Fevereiro), foi o primeiro que surgiu com este objectivo. O leque era vasto. Não apenas financiava as produções cinematográficas, mas os próprios recintos de exibição. Em 1971 foi integrado no então criado Instituto Português de Cinema (Lei 7/71, de 7 de Dezembro), ao qual sucederá o actual IPACA. Como dissemos, após o 25 de Abril, começou a pulverização de entidades distribuidoras de subsídios nesta área. A ex-Direcção-Geral de Acção Cultural (DGAC) participava activamente no processo, subsidiando, por exemplo, o cinema amador, festivais e, depois, a produção de vídeo. Para esta dispersão, o actual Ministro já deu também o seu contributo criando, à margem do IPACA, uma estrutura para apoiar o multimédia (1996), gerida no âmbito do seu Gabinete. Cerca de 1 milhão de contos até 1999...

O Fundo de Teatro, criado em 1950 (Lei 2.041, de 16 de Dezembro), prosseguiu idênticos objectivos aos do Fundo de Cinema. Foi extinto em 1986, sendo parte das suas funções transferidas para a DGAC, e as receitas para o Fundo de Fomento Cultural. Depois de 1974, também os subsídios nesta área foram pulverizados, ao ponto de hoje ser já difícil reconstitui-los. Para além deste Fundo, que ficou limitado a passar cheques, os subsídios para o Teatro passaram também a sair de orçamentos, como os dos Gabinetes de Ministros ou Secretários de Estado, Delegações Regionais de Cultura, Fundo de Fomento Cultural, mas também da ex-DGAC, ex-DGE, ex-DGEAT, ex-DGESP, das Capitais de Teatro ou do actual IAC (Instituto de Artes Cénicas). Desiluda-se quem queira obter, neste quadro, qualquer coerência ou facilidade para apuramento de dados.

O Fundo de Fomento Cultural (FFC), criado em 1973 (Dec-Lei 582/73, de 5 de Novembro), à semelhança do seu congénere francês, destinava-se prioritariamente a incentivar as produções artísticas inovadoras. Com o tempo acabou por se revelar o grande "saco azul" dos membros do Governo na Cultura, dada a grande abrangência que adquiriu, sobretudo com a reestruturação de 1980. Ainda hoje é ciosamente conservado. Na prática financia tudo, mesmo tudo, incluindo automóveis para os membros do Governo.

Milhões de contos, provenientes das receitas - primeiro do totobola, depois do totoloto, mas também de taxas sobre videogramas, fonogramas, tauromaquia e outras - são anualmente distribuídos, com base em simples despachos da tutela. A um conselho de administração, onde têm assento directores-gerais ou equiparados, pouco mais resta fazer do que os acatar e eventualmente meter umas "cunhas".

Quando o actual governo apresentou na Assembleia da República o seu orçamento, o Ministro da Cultura fez a promessa, em Outubro de 1996, que iria apresentar à Subcomissão de Cultura, o Plano de subsídios a atribuir pelo FFC. Como era de esperar, só o fará, se o fizer, após ter esgotado todas as verbas disponíveis. Para 1997 está previsto um montante superior a 3 milhões de contos.

Este breve retrato, poderia estender-se a outras áreas do Ministério, onde a atribuição de subsídios, sem qualquer fiscalização, é feita segundo moldes idênticos.

3. O Ministério da Cultura em vez de apregoar tanta transparência, que não pratica, poderia fazer um trabalho mais simples e útil, reestruturando o FFC, segundo princípios próprios de uma administração aberta. Eis algumas sugestões:

- algumas virtualidades da sua organização poderiam ser aproveitadas, seguindo alguns bons exemplos do que acontece nos EUA, Grã-Bretanha e em parte na França;

- a primeira coisa a fazer é concentrar nele todos os apoios aos promotores privados. Depois nomear um Conselho para o gerir que seja maioritariamente constituído por entidades ou personalidades exteriores ao próprio Estado. Caber-lhe-ia, com maior equidade e imparcialidade, que o actual sistema não permite, distribuir pelas diversas actividades culturais, as verbas disponíveis, com base nas prioridades, programas de apoio e critérios publicamente assumidos. Anualmente seria publicada uma lista nominativa com os montantes atribuídos. Nada mais simples.

Deste modo poder-se-ia obter a almejada transparência na atribuição dos subsídios pelo Ministério, dedicando-se os serviços àquilo que actualmente não fazem:

- o estudo de medidas mais ajustadas ao fomento cultural, à informação e divulgação. Os ganhos para o erário público por certo seriam enormes, para já não falar na poupança de tempo que este sistema permitiria, nomeadamente para o estudo de medidas políticas mais integradas, hoje inexistentes.

1997.6.18

Carlos Fontes

 


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