Qual Cultura ?

 

1. O conceito de cultura foi até fins do século XVIII, definido por oposição à natureza. A cultura era do domínio do adquirido. Hegel identificou depois a cultura como a criação do espírito do povo que encontra no Estado a sua mais elevada materialização.

2. Ao longo do século XIX e XX, os Estados tem-se reclamado desta concepção de cultura como a expressão do espírito dos povos.

Em Portugal, desde 1933, a "política do espírito" protagonizada por António Ferro no SPN/SNI, evocava de forma mitigada esta interpretação hegeliana, quando punha a tónica na defesa de "cultura popular" como expressão viva da "alma" nacional. A cultura como manifestação da identidade de cada povo, materializada  nas tradições nacionais e no património edificado acabou por transformar-se na posição ideológica característica da direita.

3. Contra esta concepção identificada com os valores do Estado, as correntes políticas que se manifestavam contra todas as formas de poder dominantes, procuraram construir uma outra concepção de cultura, alicerçada na espontaneidade criativa das manifestações populares e nos processos ruptura produzidas pelos criadores. A cultura teria assim uma natureza essencialmente anárquica.

4. André Malraux protagonizou neste debate, uma outra concepção de cultura estatal. Reagindo contra uma concepção nacionalista de cultura, defendeu a democratização do acesso à cultura erudita e á produção cultural. Num plano superior situavam-se as grandes manifestações de cultura erudita, produzidas por uma elite de criadores. Competia ao Estado o apoio aos seus criadores, assim como fomentar o acesso a estes bens por todos os cidadãos. Num plano inferior, encontravam-se todas manifestações de cultura popular, como expressões de participação e intervenção cultural próprias da maioria da população. Competia ao estado o seu fomento, tendo em vista alargar a base de criadores e fruídores culturais. A criação do Ministério da Cultura francês, em 1959, irá consagrar estas ideias.

5. Em Portugal, entre o 25 de Abril de 1974 e 1985, predominou um discurso político que identificou a cultura como a expressão da identidade cultural do povo português.

Neste sentido foram privilegiados os apoios à denominada cultura popular, nomeadamente as práticas culturais amadoras, como as associações culturais e recreativas, cineclubes, grupos de teatro amador, bandas de música, ranchos folclóricos, artesanato, jogos tradicionais, e outras expressões que se reclamavam de uma lógica não comercial (os grupos de teatro independentes). Estes apoios foram assumidos como legitimadores de uma pretensa política de esquerda. Mesmo à esquerda esta política estava longe ser unânime. António José Saraiva, no período aureo da PREC, veio a público afirmar que a "cultura é sempre de direita".

6. Os anos oitenta foram a consagração das teses "pós-modernas" no plano cultural. A cultura tornou-se não apenas um espectáculo, mas sobretudo uma mercadoria para ser vendida por uns e ostentada por outros.

7.Entre 1986 e 1995 associou-se a cultura com o comércio e a industria. Os apoios às expressões de cultura popular foram progressivamente abandonadas, em favor de grandes operações de cultura com uma forte vertente comercial. No património foram privilegiados os edifícios e as manifestações culturais susceptíveis de serem explorados turisticamente. No ano da euforia económica, organiza-se a Europália,  a nossa primeira grande realização de afirmação na CEE. No ano seguinte, inaugura-se o Centro Cultural de Belém cujo projecto previa um centro comercial e uma unidade hoteleira. A Expo98, para além dos efeitos mediáticos de propaganda do país no mundo, não deixa de estar articulada como uma estratégia de renovação urbana e especulação imobiliária.

8. A subida da esquerda ao poder, em Outubro de 1995, surgiu como uma alteração no plano teórico da política que vinha sendo seguida desde 1986. O então ministro da cultura, Manuel Maria Carrilho proclamou-se defensor de uma política de "esquerda". Mas não era fácil determinar os conteúdos desta política.  

Os debates que o Ministério da Cultura empreendeu em 1996, intitulados "Cultura em Diálogo", dão conta da indefinição política real que então reinava. Carrilho esperava que os convidados lhe desse o conteúdo para uma política que só tinha o nome.

O problema de fundo era todavia outro. O PS já não se identifica com as políticas de esquerda assumidas antes de 1986. O mundo também mudara, o Muro de Berlim caíra havia sete anos. 

A única ideia que assumia alguma consistência teórica, era a do Estado como corrector das desigualdades provocadas pelo mercado capitalista. O Estado devia  intervir no apoio a todas aquelas áreas, onde a criação cultural não visassem o lucro, mas apenas a "qualidade".  A aferição desta foi remetida para os próprios interessados, os beneficiados pelos subsídios estatais. Apesar de ter sido criada uma Inspecção Geral de Actividades Culturais, não constata que esta alguma vez tenha inspeccionado fosse o que fosse de um subsídio atribuído pelo Estado, embora esteja nas suas atribuições fazê-lo. 

A esquerda assumiu a dimensão aristocrática da cultura. Não quer actividades culturais independentes rentáveis, mas dependentes. Não quer espectáculos ou eventos de massas, mas apenas públicos especializados.

Esta política tinha uma fim previsível: os limites do orçamento de Estado. Quando não foi possível aumentar o orçamento para a cultura na proporção requerida pelos todos os grupos beneficiários, o ministro bateu com a porta e saiu.

9. A escolha de Sasportes para Ministério da Cultura, em Julho de 2000, não apanhou ninguém de surpresa. O tempo não era de políticas mas de gestão corrente. Não se requeria um ministro com ideias, mas alguém que soubesse de contabilidade. A escolha do novo Secretário de Estado da Cultura foi aliás feita em função desta condição. Alguém cujos créditos não são políticos, mas contabilísticos. A proliferação de organismos e serviços parasitários criados por Carrilho era de tal forma que ameaçava absorver os recursos que se destinavam a a serem distribuídos. A prática de receber sem prestar contas, tinha-se instituído. O Ministério da Cultura tornara-se numa caixa negra, onde a informação para o exterior foi sendo reduzida à sua expressão mínima. É enorme o número dos que têm interesses nesta prática. No momento em que os indicadores de produtividade do país se revelam catastróficos, é curioso constatar que em termos de política cultural, tenhamos descido igualmente ao grau zero. Nem ideias existem.

Lisboa, 2000

Carlos Fontes

 


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