Carlos Fontes

Barbárie

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Regresso ao Passado ?

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Multiplicam-se os sinais de que na Europa está em curso uma mudança: tradições de outros povos não-europeus que antes eram toleradas, em nome do respeito pelas diferentes culturas estão a ser combatidas. Os pretextos são muitos.  Em França, promete-se uma luta sem tréguas contra a poligamia, a excisão feminina, etc. Na Inglaterra, os casamentos entre primos, prática pelos vistos muito comum entre os muçulmanos paquistaneses, é agora apontada como causa de um elevadíssimo número de casos de degenerescência biológica evitáveis e portanto intoleráveis. Em Espanha, o alvo são os casamentos de jovens combinados pelas famílias e a morte das jovens que não os aceitam. As comunidades visadas são quase sempre as muçulmanas.

No plano teórico, filósofos como Jean Baudrilard, falam agora de uma Europa cuja cultura se está a desintegrar. O coro dos que repetem estas ideias está a aumentar dia após dia. Como se chegou aqui ?   

1.Europa Triunfante

A história que os europeus contaram de si mesmos durante séculos foi marcada pelo orgulho. Possuíam uma notável cultura e civilização, cuja matriz greco-latina e cristã era considerada superior a qualquer outra existente. Esta presunção legitimou a sua expansão pelo mundo, a conquista e colonização de outras regiões e povos. 

As histórias de muitos povos europeus, como os portugueses, espanhóis, ingleses, holandeses, franceses ou italianos, está repleta de acções que segundo os nossos valores actuais seriam criminosas. Miguel Angelo, por exemplo, na Capela de Sistina (Vaticano) representou a escravatura como uma obra civilizadora, pois permitia resgatar os "selvagens" à barbárie em que viviam. Estes actos, embora na aparência bárbaros, eram entendidos pelo europeus na época como necessários ao progresso dos povos primitivos, etapas históricas que tinha que ser percorridas. 

2. Europa Envergonhada

A partir dos anos 60 do século XX, os europeus passaram a ver com outros olhos o seu passado. Onde antes viam gestos civilizadores passaram a ver actos bárbaros. A escravatura tornou-se uma questão incomoda, um acto vergonhoso. A expansão uma vasta acção de rapina. O colonialismo uma acção negativa, que só serviu para destruir povos, culturas, etc. As guerras e fomes que ocorriam nas antigas colónias europeias, após a sua independência, foram sentidas como produtos da acção europeia. A sua maléfica  influência só serviu para degenerar os diferentes povos. Criar as condições para a proliferação da miséria actual. Se os europeus não tivessem ido para África, América, Ásia ou Oceânia o mundo seria muito melhor.  

Foi com um enorme sentimento de culpa, que os europeus receberam milhões de imigrantes provenientes das antigas colónias. Toleraram hábitos e costumes, muitas vezes contrários aos seus valores. Faziam-no porque não se sentiam capazes de impor nada a outros. O respeito pelas diferenças, denominado multiculturalismo, era a única atitude possível quando não se quer assumir nenhuma posição. Cada um continuaria com as suas tradições, vivendo nos seus espaços próprios, limitando-se os poderes públicos a manter esta frágil convivência de culturas.

A causa de tanta vergonha dos europeus face ao seu passado, não está para muitos no exterior da própria Europa, mas nas matanças que no seu interior ocorreram nos últimos duzentos anos. Os exemplos são muitos, a começar pelo sistemático etnocídio praticado pelos espanhóis em Olivença, passando pelas invasões francesas, às duas guerras mundiais, matanças no País Basco e na Irlanda do Norte, terminando na Bósnia-Herzegóvina, temos que concluir, com George Steiner que os europeus se suportam mal. A maior parte do tempo tem andado a matar-se.       

3. O Dedo Muçulmano

A emergência do fundamentalismo islâmico foi apenas um passo neste processo histórico. Os europeus foram globalmente identificados como a causa da desgraça da humanidade. A única salvação possível é a barbárie, isto é, a morte indiscriminada dos "infiéis". O 11 de Setembro em Nova Iorque é o símbolo por excelência, mas não o único, desta matança. O que os europeus constataram foi também outra coisa, ainda mais dramática: é que a sua cultura está longe de encantar os filhos de muitos dos seus imigrantes das suas ex-colónias. Mas nãos e pense que são só os que tem origem não europeias. Em Novembro de 2005, os belgas viram uma das suas cidadãs, com raízes europeias, matar-se matando ocidentais e simbolicamente fazendo o mesmo a tudo aquilo que a Europa e os ocidentais significam. A comunicação ocidental procurou diminuir os estragos provocados, mostrando que a mesma estava contaminada pelo vírus do islamismo.

4. Reacção Europeia  

Se os europeus continuam a não manifestar grande orgulho no seu passado, deixaram de ser indiferentes perante as sistemáticas acusações que são alvo. Estamos a assistir a um crescente movimento de defesa dos valores e da cultura europeia. Em França, o governo decretou que nas escolas se ponha fim à visão negativa que estaria a ser dada história da sua colonização em África. Os professores são agora obrigados a exaltar os aspectos positivos do colonialismo francês, nomeadamente na Argélia, ignorando ou relativizando matanças, escravatura, etc. Na Grã-Bretanha, e em muitos outros países, cresce a recusa em ajudar os africanos. De acordo com o novo discurso, a culpa da sua miséria não se deve à escravatura e exploração que foram vítimas no passado pelos europeus, mas a eles próprios que nada  fazem para acabar com os governos corruptos e incompetentes que os governam. Nos EUA, partindo-se do pressuposto que a "guerra de civilizações"  é uma inevitabilidade dos nossos tempos, defende-se a definição das fronteiras a nível mundial, entre os "civilizados" e os "bárbaros" (muçulmanos e outros não ocidentalizados). 

Face a este panorama, não é de estranhar que a ONU tenha cada vez mais dificuldade em angariar apoios para milhões de pessoas que morrem à fome em todo o mundo.

5. De Camões a Fernando Pessoa, passando por Kant

Este debate não é novo em Portugal. Há muito que os poetas, na primeira nação europeia que se expandiu para fora do velho continente, defendiam um nova concepção visão para este problema. 

A perspectiva  europeia tradicional, protagonizada no século XVI, por Luís de Camões era muito clara nos seus propósitos. Ao longo dos dez cantos d`Os Lusíadas (1572), expõe a missão história dos europeus: a conversão dos não-ocidentais aos seus valores e religião. O cristianismo afirma-se como a única religião universal, excluindo todas as outras. Os portugueses foram os primeiros a abrir este caminho para esta acção de conversão. Deram o exemplo e depois deles outros povos europeus os seguiram (espanhóis, holandeses, ingleses, franceses, etc). O modelo de homem Camões é o de um cristão, convicto da superioridade da cultura europeia e da necessidade de a expandir. Em nenhum momento o poeta questiona esta missão, mesmo quando aponta os sacrifícios que a mesma implica. 

Camões e Homero

No Canto Nono d`Os Lusíadas, Camões introduz simbolicamente uma diferença radical na maneira dos portugueses (cristãos) encararem outros povos.  

Na Odisseia, Homero impede que o herói - Ulisses -, se misture ou  se deixe encantar. Ulisses para não se deixar seduzir pelas sereias tapa com cera os ouvidos, e faz-se acorrentar ao mastro. Simbolicamente rejeita-se assim o cruzamento entre povos, a miscigenação. 

No Canto Nono, na célebre "Ilhas dos Amores" , os navegadores, incluindo Vasco da Gama, não apenas se deixam seduzir, mas procuram a sedução, terminando  numa orgia com as ninfas. Camões afirma desta forma simbólica que a miscigenação ( e a fornicação com outros povos) faz parte integrante da maneira dos portugueses viverem a expansão e a difusão dos cristianismo pelo mundo. O sexo esteve sempre presente na epopeia dos portugueses.

Quando os europeus haviam afirmado o seu poder à escala global, E. Kant, na Alemanha, define assim o Homem do Futuro: cosmopolita, sem pátria e sem uma cultura nacional. O homem é assim reduzido na sua diversidade. Este é o preço que terá que pagar para evitar os conflitos entre os povos, as guerras. Reagindo contra esta visão iluminista, o século XIX acaba por mergulhar num conflito de nacionalismos. O Ideal do homem kantiano, é retomado por algumas ideologias de esquerda que prometem criar um Homem Novo (internacionalista). O resultado foi a  criação de regimes totalitários que apregoavam o internacionalismo proletário.   

Fernando Pessoa, entre as duas guerras mundiais que marcaram o século XX, retoma na Mensagem a epopeia de Camões. Rompe com o modelo do Homem Europeu camoniano, mas também com o homem desenraizado de Kant. O que os europeus deviam de assumir como missão histórica era criar um homem múltiplo, plural - Um híbrido, produto de todas as culturas, todas as civilizações.   

O Homem de Fernando Pessoa não é cristão como o de Camões, nem desenraizado com o de Kant, mas cristão-muçulmano-judeu-ateu-cosmopolita e tudo o mais que a sua "alma" for capaz de conter. Reconhecendo-se como múltiplo e não uno, está aberto aos vários mundos. Não se trata de defender o multiculturalismo, onde cada povo é remetido para o seu gueto, mas a miscigenação universal. Um projecto posto em prática à escala planetária pelos portugueses, mas interrompido no século XIX pelos movimentos racistas que brotaram no seio da Europa. "É Hora! " de cumprir esta missão, afirma o poeta.

Carlos Fontes

 

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