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História da Formação Profissional e da Educação em Portugal

Carlos Fontes

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Idade Moderna - II (Século XVIII)

Casa Pia de Lisboa

 

A Casa Pia de Lisboa constitui um singular na educação e formação profissional em Portugal. Primeiro pela dimensão do projecto, depois pelo a continuidade que vem demonstrando, sempre ligada aos momentos decisivos que se inovou no pais na formação profissional.

A origem da Casa Pia de Lisboa é demasiado conhecida para que a recordemos aqui em pormenor. No entanto é necessário ter presente que a mesma surge como uma resposta formativa  para um problema social: a falta de trabalho que se fazia sentir em finais do século XVIII, e que traduzia-se no aumento da mendicidade e da vadiagem nas ruas da cidade de Lisboa.

A gravidade do problema está suficientemente posta em destaque por diversos autores. Lisboa estava em polvorosa, como escreve Pina de Manique ao então ministro da Marinha, Martinho de Melo e Castro: "As gentes que habitam esta capital estão em desassossego, clamando publicamente, pedindo justiça e proferindo algumas palavras contra o decoro da Soberana e do seu ministro. Muitas destas gentes andam já armadas com cintos de pistolas e facas; outros, querendo vingar a dor de verem maltratados os seus parentes e amigos, andam a cavalo com espadas e armas de fogo. Isto é cousa de tal gravidade , que a não se remediar no principio, poderá romper em algum excesso de funestas consequências e lembro-me de alguns casos da nossa história que principiaram por este modo"[1].

  A Casa Pia de Lisboa é obra do Intendente da policia da Corte e do Reino, Diogo Inácio Pina Manique, nomeado nestas funções em 18 de Janeiro de 1780. O Intendente foi o mentor e o obreiro desta Instituição, com uma energia notável. Ainda mal havia sido nomeado já a 20 de Maio deste ano, Pina Manique era autorizado a organizar um estabelecimento de assistência que servisse para recolher e educar orfãos e outras crianças desvalidas, mas tambèm para regenerar mendigos, vadios, homens e mulheres considerados de má vida, a todos seria ministrada instrução e a aprendizagem de um oficio. A 3 de Julho deste ano, eram recebidos no Castelo de S. Jorge os primeiros assistidos, e a 29 de Outubro era este estabelecimento inaugurado solenemente. A Casa Pia possuia ao fim de tres anos de funcionamento várias casas, em grande parte devido á energia e poder de Pina Manique:      

   - A "Casa da Força" destinada á "regeneração " de ambos os sexos, e onde se aprendiam  diversos oficios , possuía três casas: a Casa de Nossa Senhora do Carmo para mendigos e vagabundos, com capacidade para 800 deles, trabalhavam aí a cardar e limpar o linho e o algodão, na cordoaria , ferraria e serviços domésticos.; a Casa de Santa Margarida de Cortona, com uma capacidade para 500 mulheres, destinava-se á "regeneração" de prostitutas, sendo os trabalhos de fiação do linho e do algodão. Para apetrechar estas casas, Pina Manique mandou que aí se instalassem teares, rodas de fiar e outros utensílios que haviam pertencido à Fabrica de Algodões de Sacavém; a Casa de Nossa Senhora do Livramento, com capacidade para 800 homens, servia de prisão da cidade, e destinava-se a receber delinquentes que eram ocupados com trabalhos forçados, nomeadamente na Cordoaria. Mais tarde, Pina Manique consegue que a Casa de Correcção do Arsenal Real, a "Casa da Estopa", onde delinquentes eram forçados a trabalhar na cordoaria, fosse transferida também para a Casa Pia do Castelo, aumentando deste modo a sua produção.  Sobressaiu sempre neste projecto uma intenção produtiva, que se queria senão rentável, pelo menos capaz de pagar as suas próprias despesas. Tornar rentável esta instituição transformou-se no grande objectivo que passou a nortear a acção de Pina de Manique, e que constituirá aliás o sonho dos Asilos do Século XIX.

   - Casa de Santa Isabel, destinada a crianças abandonadas e  orfãos do sexo feminino, para além de receberem  a instrução elementar, aprendiam bordados, tecelagem,  e outros oficios, tendo para o efeito vindo mestras francesas.

   - Casa de Santo António, destinado como o anterior a crianças abandonadas e orfãos, para alèm da instrução elementar ,aprendiam depois um oficio . Para os que revelavam melhores aptidões, podiam depois prosseguir a sua formação no  Colegio de São Lucas ou no Colégio de São Diogo. O Colégio de S. Diogo foi entregue a um alemão, António Falket, aí ensinava-se alemão e comércio. No Colégio de S. Lucas, o leque de materias era mais amplo: ensino da gramática, latim,fisica experimental, aritmética militar e civil, ingles, frances, navegação, e principios de várias artes, tendo mesmo aí funcionado um curso de farmácia, para o qual se instalou um vasto laboratório. Para as Aulas de Fortificação deste colégio  pediu Pina Manique ao Secretario de Estado da Guerra, Aires de Sá Melo, autorização para o Conde Francisco Ferreri, primeiro tenente do regimento de Artilharia , de Valença do Minho, ensinasse os estudos de fortificação, aos rapazes que haviam aprendido já os principios de geometria, o que foi concedido.

    - Casa de Nossa Senhora da Conceição, destinada a preparar cridas de servir, prestando-lhes depois um apoio adequado.

Paralelamente a estas casas, Pina Manique instituiu outras estruturas de ensino, para as quais reputados mestres:

    - Aulas de medicina , anatomia, partos e farmácia.

Um das suas primeiras iniciativas neste dominio foi a criação em Junho de 1789, de acordo  com o reitor da Universidade de Coimbra, de um Colégio destinado aos religiosos hospitalários de São João de Deus, para aí ministrarem conhecimentos de medicina e cirurgia, mas que só efectivamente só ocorreu em 1789, quando este se instalou no antigo Colégio das Artes confiscado aos Jesuítas por Marques de Pombal. Neste, 46 alunos, recrutados entre diversas partes do pais frequentavam as cadeiras de medicina  e ciências naturais.

No colégio de S. Lucas, no Castelo, funda ainda a aula de Anatomia especulativa, cuja regência foi entregue ao professor Francisco Luis de Assis Leite, sendo as aulas praticas realizadas no Hospital de S. José. Em simultâneo, funcionava também na Casa Pia a uma aula de partos, frequentada por alunos de ambos os sexos, mas em horas desencontradas, estando este ensino a cargo de médico-parteiro José Antònio do Couto. Equipando-se estas aulas com os melhores instrumentos da época.

Os alunos que mais se evidenciaram , foram enviados para outros paises afim de aí de especializarem.

A Farmacologia foi outros dos importantes dominios a que Pina Manique se entregou a promover o seu ensino. Em 1791, instalava na Casa Pia uma vasta farmácia, que fornecia medicamentos não apenas aos indigentes, mas também as boticas dos regimentos, dos arsenais e postos coloniais, com preços inferiores aos do mercado. A montagem deste vasto laboratório, exigiu naturalmente a formação de boticários, que Pina Manique ordenava em 1794 que seguissem os métodos da Universidade de Coimbra, preparando-se os remédios segundo as prescrições da "Pharmacopea Geral".  

    - Academia do Nu. O projecto tinha abortado em 1779, quando Vieira Portuense e André Gonçalves procuraram, sem exito fundá-la. Primeiro porque não encontraram modelos masculinos disponíveis, depois porque a reacção da população  a estas aulas de nu tal não permitiu. A tentativa no ano seguinte de Cirilo Wollkemar Machado e Joaquim Manuel da Rocha, também não conseguiu sobreviver[2]. Apenas Pina Manique, a inaugura no dia 17 de Outubro de 1785, sob a Designação de "Régia Academia Olissiponense de Pintura, Escultura e Arquitectura", sob o patrocínio de S. Lucas . As sessões preparatórias e inaugural, como escreve F. A. Oliveira Martins [3], tiveram lugar no próprio palácio do Intendente, para talvez evitar novos apedrejamentos da população. Nesta Academia, que não se restringiu aos alunos da casa Pina, ensinou Machado de Castro. Integrado no Colégio de S. Lucas, Pina Manique criou em 1781, ainda aulas de Desenho, que atingiram assinalável exito ao tempo.

     - A Academia Portuguesa de Belas Artes, em Roma, prosseguia o velho projecto de D. João V, mas agora recuperado com outra amplitude, e para onde foram enviados entre 1785 e 1797, os alunos da Casa Pia que se distinguiam nas belas artes.

A Casa Pia tornou-se no final do século num notável estabelecimento de assistência e formação, mas também de produção. Os texteis e a cordoaria foram os produtos particularmente visados. As fábricas da Casa Pia de lonas e brins, atingiram valores muito importantes. A direcção deste fabrico foi entregue a um ingles, MaKbay contratado em Inglaterra, com a incumbência de ensinar o oficio aos alunos da Casa Pia, oriundos de todo o pais, sendo depois de formados enviados de novo para as suas terras onde se estabeleceriam como mestres, sob a protecção do Intendente. Os estabelecimentos da Casa Pia, com grandes armazens na Ribeira das Naus, forneciam os vasos de guera e mercantes de lonas, brins e enxárcias, de muito boa qualidade.

Outras medidas idênticas foram tomadas para aumentar a rentabilidade da produção da cordoaria, sedas, produtos farmacêuticos.

  Esta acção, cuja magnitude não tem paralelo neste século, é contudo cortada pela raiz, a 30 de Novembro de 1807, quando as tropas francesas entram em Lisboa. 

A Casa Pia é encerrada, ficando parte das tropas de Junot aquarteladas nas suas instalações no Castelo de S. Jorge. Apenas a 31 de Agosto de 1811, a Casa Pia reabre, mas já no Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro, reduzindo-se a sua acção apenas ás crianças, contemplando sempre a instrução com aprendizagem de um oficio.Aí são ministrados cursos de alfaitaria, sapataria, latoaria de folha branca, surrador, tecelão, cordoeiro e esparteiro, mas perdendo-se já todo o carácter académico que PinaMmanique imprimira à instituição.  Mais tarde, em 1833, a Casa Pia é transferida para o Mosteiro de Santa Maria de Belém, deixando de ficar também sob a dependência do Intendente da Policia, passando a ter uma administração própria.

A Casa Pia de Lisboa é uma das primeiras instituições a abrir uma ruptura com a velha estrutura corporativa, pois das suas oficinas começaram a sair "aprendizes" e "oficiais". 

A reacção foi enorme por parte das antigas estruturas corporativas, que se viram ameaçadas nas suas prerrogativas. O Senado da Câmara de Lisboa, em 1832, acaba por pronunciar-se a favor dos aprendizes e oficiais preparados nas escolas da Casa Pia, não obstante as mesmas deverem conformar-se às regras prescritas pelos Regimentos do diversos ofícios[4]. Este episódio marca o inicio simbólico das novas formas de formação da era industrial.

Em Construção ! 

Carlos Fontes

Navegando na Educação

Notas:

[1]. citado por Luz Soriano, História da Guerra Civil , Doc. no T.III, pag.61.

[2] Cirilio Wolkmar Machado, Colecção de Memórias...",1828. A razão do fracasso desta Academia deve-se acima de tudo ao falecimento do propriet+ario do Palácio onde funcionavam as aulas.

[3]. F.A. Oliveira Martins,Pina Manique. O Politico - O Amigo de Lisboa. Lisboa.1948.

[4] Almeida Langhans, in Enciclopédia verbo, Vol.2.pag.818  

 

]. E.