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História da Formação Profissional e da Educação em Portugal

Carlos Fontes

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Idade Moderna - I

Regimentos de Ofícios Mecânicos

Ao contrário do que ocorreu por toda a Europa, as "corporações" em Portugal são muito tardias, pois datam apenas do final do século XV.

Não eram propriamente organizações profissionais, nascidas do seio dos diferentes mesteres, mas regulamentos régios publicados numa fase em que o Estado se centralizava e procurava normalizar as diferentes leis.

Os "Regimentos" eram os regulamentos que regiam os ofícios mecânicos, e vieram a tornarem-se nos unicos suportes de organização formal das actividades dos mesteres;

O primeiro Regimento conhecido entre nós data apenas de 1489 e diz respeito  aos borzeguieros, sapateiros, chapineiros, soqueiros, curtidores da cidade de Lisboa, que possuíam  já uma Confraria e um hospital próprio, o de S. Vicente , local onde também se reuniam. 

Este Regimento determinava que nenhum obreiro ou oficial podia por tenda própria sem previamente ser examinado, por juízes ou vedores nomeados nos mesteres, em numero de quatro. O exame passava a fazer-se, sendo este exame conforme ao que se praticava em outras vilas e cidades "de fora destes reinos", o que parece indicar que os mesmos não eram seguidos em Portugal[1].Sobre a origem deste Regimento mito tem-se já escrito. 

Uma das teses que nos parecem mais consistentes, atribuiu o seu aparecimento, a um conjunto de medidas régias para controlar os preços. Na realidade, D. João II procurava nesta altura corrigir a desordem monetária criada por D. Afonso V; Por Carta Régia de 20 de Abril de 1487, ficou estabelecido que em todas as cidades, vilas e lugares do reino seriam elaboradas "taxas" ou tabelas "sobre oficiais e artes mecanicas e outras coisas que adiante serão declaradas". A elaboração destas Tabelas ficariam a cargo de três homens-bons em cada lugar, devendo -as concluir até 15 de Setembro de cada ano. Para  as fiscalizarem e tomarem as medidas julgadas necessárias contras os infractores, deveriam  ainda nomeados dois juizes por cada mester. Dois anos depois, a 22 de Setembro de 1498, reunidos em Assembleia os borzeguieiros e os oficios já referidos  estabelecem o primeiro Regimento entre nós dos oficios mecânicos. 

    A partir do século XVI os regimentos difundem-se, abrangendo um largo leque de profissões, como os Boticários (1497 ?),Barbeiros (1511), Bordadores (1517), Cordeiros de Obra Delgada (1534), Ensambladores (1549),Ourives de Prata (1550),Alfaiates, Cabeiteiros (?) e Tanoeiros (1551), Fabricantes de Colchas (1552), Batefolhas (1556), Pasteleiros (155$), Latoeiros de Folhas Branca e Chumbo (1556), Tapeceiros (1558), Tecelões (1559), Bargueiros (1563), Atafoneiros e Moleiros (1564), Picheleiros (1566 e 1572),etc. Nestes regimentos toda a actividade profissional está por vezes minuciosamente regulamentada. A formação profissional, ocupa neles um lugar central, fixando -se desde as condições para a admissão dos aprendizes, o numero dos que podiam trabalhar em cada tenda, o modo em que se efectuaria a ascensão destes a oficiais, e destes últimos a mestres, assim como as condições que teriam que respeitar para poderem abrir novas tendas ou oficinas. Nada de significativo para a actividade profissional era deixado ao acaso.

  O número crescente de Regimentos de oficios mecânicos reflecte por um lado a adopção de medidas proteccionistas, em favor dos mestres já instalados contra a concorrência dos mais novos, por outro, revela uma maior organização dos ofícios, onde sobressaia uma especialização cada vez mais acentuada nas diversas actividades profissionais.

    Em 1572 , D. Sebastião ordenou a Reforma diversos Regimentos dos ofícios mecânicos, cabendo a tarefa ao licenciado  Duarte Nunes de Leão, que neste ano publica o "Livro dos Regimentos dos Officiaes  Mecanicos da Mui Excelente e sempre Leal Cidade de Lisboa[2]". Esta obra e outros trabalhos posteriores do mesmo autor, tornaram-se a base dos novos regimentos. Esta reforma dos regimentos constituiu um importante marco nas regras obrigatórias que regiam os diferentes oficios, definindo-se a matriz para os futuros regimentos:

  - Regras e periodicidade da reunião da assembleia anual  do oficio,e eleição dos juizes ou vedores, mordomos e escrivão.

  - Regulamentação dos exames de mestria e da obtenção da carta de exame ;

  - Hierarquização dos membros do mesmo oficio:

  - Designação das matérias primas a usar;

  - Providencias no sentido de evitar a concorrência;

  - Regras sobre a correição a ser efectuada pelos juízes; fiscalização do desempenho da profissão e a visita de correição às tendas.

  - Penalidades a aplicar aos que incorressem em fraude;

     Esta Reforma, ao acentuar a rigidez dos regulamentos dos oficios mecanicos, traduziu-se em funestas consequências para o desenvolvimento económico portugues."Um dos principais factores de subdesenvolvimento e decadência nacionais"[3]

    O itinerário de qualquer praticante de um oficio, obedecia a três etapas distintas, a saber: A aprendizagem, a passagem a oficial e a obtenção do grau de mestre[4].

  1. Aprendizagem

A aprendizagem de qualquer oficio fazia-se na oficina ou tenda do mestre, sob a orientação deste. A pratica dos contratos, como dissemos estava muito vulgarizada nestes séculos. Enquanto não aspira-se o prazo estipulado no contrato não era permitido ao aprendiz ausentar-se da oficina ou tenda. A duração da aprendizagem era muito variável, cinco para os fabricantes de corda, seis para os carpinteiros de carruagem e marceneiros, quatro para os cutileiros e agulheiros, 6 para os calceteiros, dois a cinco anos no caso de ensambladores, entalhadores, escultores e torneiros, e de cinco a nove anos já no caso dos Pintores.  A Idade com que se iniciava a aprendizagem era também muito diversa: onze a dezoito anos, ou mesmo já em idade adulto, mas só muito raramente com mais de vinte e um anos. 

  Findo o período de aprendizagem, o mestre devia dar conhecimento do facto ao juiz, mordomos e escrivão da respectiva confraria, pra que este tomasse assento como irmão na mesma, endo para o efeito o jovem de pagar a respectiva "espórtula da entrada"[5].

 2. Passagem a oficial

Terminada esta fase, o aprendiz passava á categoria de oficial não examinado, devendo solicitar ao juiz do oficio uma matricula na qualidade de oficial. Nesta categoria, e antes de recorrer a um exame, deveria o oficial passar certo tempo. Este tempo em geral não era inferior a seis anos, comprovado por uma certidão[6].

  "Acautelando possíveis fraudes, já que os oficiais conseguiam, por vezes, obter ilicitamente do mestre esse documento, sem que tivessem cumprido o tempo estipulado, quer como aprendizes, quer como oficiais, os juizes do oficio, no acto do exame, conferiam a certidão com a matricula em que fora registada a sua entrada na oficina. Se os dois elementos não se ajustassem, o oficial não era admitido a exame"[7].

  A nenhum oficial era permitido o abandono do mestre com quem aprendera o oficio, sem o prévio aviso com pelo menos quinze dias de antecedência.

  A consequência maior desta fase, era o facto de nenhum oficial que não fosse examinado poder abrir tenda ou oficina, nem receber aprendizes ou outros oficiais. Quem o fizesse sujeitava-se a pesadas multas ou mesmo á prisão.  Ainda numa carta lei de 30 de Agosto de 1770, se afirma claramente que: "Não é permitido (...) nas artes fabris que alguém possa nelas exercer ou abrir loja como mestre, ou trabalhar  como artifice sem cartas de examinação dos seus respectivos grémios".

3. Obtenção do grau de mestre

Após o tempo estipulado para a categoria de oficial, podia este requer então o seu exame. O exeme realizava-se na presença de dois juizes do oficio e na casa de um destes, onde se executava um trabalho pratico e demonstrava-se conhecimentos teoricos reveladores de um bom dominio do oficio em causa. Esta obra que compendiava o saber do próprio oficio, era a célebre "Obra Prima"( chef d Oevre das corporações em França, ou a Master- Work dos ingleses). A sua realização de forma perfeita era a condição essencial para se atingir a posição de mestre, e obter a "carta de exame". O preço do exame era em geral muito elevado, o que dificultava ainda mais o acesso á categoria de mestre. Os emolumentos (?) apurados revertiam a favor dos juizes, do escrivão e dos cofres do oficio.

Para o oficial o exame era o termino de  um longo e penoso itinerário profissional, atingindo deste modo o topo da sua formação. 

Se as provas eram consideradas boas pelos juizes , também designados juizes examinadores, estes declaravam apto o novo mestre para o exercicio da profissão.           

Este exame dava origem a uma "carta de exame", a qual com a carta do mestre, constituíam os requisitos para o exercício do oficio por conta própria. A carta de exame era passada pelo "escrivão do oficio" e assinada pelos examinadores; era vista e confirmada e registada pela Câmara respectiva. O novo oficial prestava juramento que executaria o seu oficio sem engano. O escrivão da Câmara lançava  "assento" de tão solene compromisso na "Carta de Examinação".       

4. Ao longo do século XVII, em Portugal, como em Espanha, á indícios claros que estas regras corporativas se desenvolveram e reforçaram , constituindo em cada oficio verdadeiros monopólios avessos á inovação e introdução de novos membros. Muitas regras proteccionistas vinham desde há muito a ser estabelecidas através de posturas municipais, mas foram os regimentos que as consagraram e lhes deram uma enquadramento global: começaram então a surgirem os conflitos com mestres de novas artes que se pretendiam instalar entre nós, como quanto aos que vinham de fora. Em ambos os casos, as dificuldades eram enormes.

"No entanto, se apesar dos entraves que lhe eram levantados, mantivessem esta vontade no século XVIII, tinham de obter uma licença da Junta do Comércio e do Senado da Camara e, uma vez esta alcançada, eram obrigados a submeter-se ás disposições do compromisso do oficio e a pagar uma quantia avultada para a respectiva Confraria"[8]

Os regimentos, como as Confrarias tentavam naturalmente proteger os mestres já instalados e as suas familias , assim como evitar a concorrência entre eles: cada mestre só podia, por exemplo, ter uma loja; as viúvas dos mestres falecidos podiam continuar com a loja aberta dos seus maridos, mas não podia voltar a casar; 

"Tem interesse notar, escreve Oliveira Marques sobre o século XVII , que a permanência e o robustecimento das corporações numa época em que , noutros países mais progressivos elas começam a dar claros sinais de enfraquecimento, constitui  prova evidente da tendência para manter formas arcaicas e absoletas, de reacção contra a inovação, do medo face ao progresso"[9].

Os Regimentos estabelecidos por Duarte Nunes de Leão continuavam ainda em vigor, sem grandes alterações no século XVIII, quando são finalmente reformados numa altura em que o próprio sistema corporativo já estava há muito em crise. O incremento das novas manufacturas e das primeiras fábricas obedeciam a regras e a uma lógica muito distinta das pequenas tendas ou oficinas; A Junta Geral de Comercio, criação pombalina chamou frequentemente a si quer a regulamentação da formação dos  aprendizes, quer a fixação das normas de promoção dos seus mestres. No inicio do século XIX, será mesmo a vez de um estabelecimento de assistencia como a Casa Pia, abrirem uma ruptura no sistema ao promover os seus próprios alunos a oficiais.

Os Regimentos se constituíram a base legal dos diferentes oficios, não podem ser desligados das Confrarias ou Irmandades. A copula legal e normativa residia nos regimentos, mas a  realidade associativa assentava em volta destas associações.

Em Construção ! 

Carlos Fontes

Navegando na Educação

Notas:

1] Marcelo Caetano, História do Direito Português.

2]Esta compilação existe no Arquivo Municipal de Lisboa, e começou a ser publicada em 1926 por Virgílio Correia. ver "Documentos Extraídos doc. 3. Regimento de Ofícios...", do Arquivo da Camara Municipal de Lisboa", V. Correia, Boletim de Arte e Arqueologia.

[3] Carlos da Fonseca, in, Ensaio Económico - Social Sobre as Corporações e Mesteres", In, Subsídios Para a História da Industria Portuguesa, Esteves Pereira. Lisboa. Guimarães / C. Editor. 1979.

[4] Natalia Marinho Ferreira Alves ....

[5]. António Cruz, Os Mesteres do Porto, pag. pag.22o ( cap.28).

[6] Este tempo dependia de oficio para oficio, assim era de quatro anos para os carpinteiros, pasteleiros ou cutileiros, dois para os agulheiros, etc.

[7].  Natalia Marinho , ob.cit, pag.73.

8]. Natalia Marinho, ob.cit., pag. 75.

[9]. A. H. de Oliveira Martins, História de Portugal. Palas Editora, pag.398.