Educação Inclusiva: Algumas Questões Prévias
Carlos Fontes |
A Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, organizada pela UNESCO, em Salamaca, em Junho de 1994, consagrou um conjunto de conceitos como “Inclusão” e “Escola Inclusiva” que passaram a fazer parte da gíria entre os profissionais ligados à educação.
Para muitos a Declaração de Salamanca representa a consagração de uma educação que atende às diferenças individuais, e ninguém exclui na mesma escola. Para outros, trata-se de um novo discurso educacional adequado a uma nova economia mundial que integra ricos e pobres, trabalhadores e desempregados, normais e anormais num mesmo sistema de exploração, mantendo todas as abissais desigualdades sociais. Tudo pode ser rentabilizado e gerar mais valias.
O tema não é novo. Durante séculos o debate sobre a exclusão/integração esteve centrado sobre a questão da natureza humana. A primeira fronteira entre os homens está na concepção que cada um vai criando sobre a natureza humana. A melhor prova disso é a falta de unanimidade que existe quando são colocadas questões, tais como: O que é o homem? Todos os homens são iguais ou uns são mais iguais que outros? A natureza de um branco é igual à de um negro?. Todas as definições pressupõe sempre uma relação de integração/exclusão. A única saída seria evitar todas as definições sobre o Homem. Mas é isso possível?
Etimologicamente, a palavra natureza deriva do latim natura (gnatura), natus, gnetus, nasci (nascer), que, por sua vez, provém de uma raiz comum. Gena, ou, em indo-europeu, g`n, que possui formas verbais em quase todas as línguas. A tradição filosófica consagrou que a natureza de algo é o seu ser, a sua essência ou substância. A natureza humana é pois um conceito ideológico que tem servido para fundamentar as mais dispares teorias políticas e educacionais. 1.
Natureza da
Natureza Humana A matriz do pensamento ocidental é grega, e para a formação desta a medicina desempenhou um papel incontornável. Werner Jaeger na sua monumental obra – Padeia -, demonstrou como no século V a.C, o pensamento grego se cinde em duas correntes que acabaram por modelar as nossas concepções actuais sobre educação. Ambas se apoiam em duas visões divergentes sobre a natureza humana. Os sofistas dissociando a natureza física das convenções humanas, acabaram por atribuir a estas últimas o fundamento de todas as desigualdades entre os homens. A natureza humana foi entre eles concebida de uma forma igualitária. “Bárbaros e gregos, temos todos a mesma natureza, em todos os aspectos”, afirma o sofista Ateniense Antifonte (A Verdade). O fundamento das diferenças nacionais e das desigualdades entre os homens não radica na natureza, mas nas convenções sociais decorrentes de relações de domínio que os homens foram estabelecendo entre si. Retenhamos esta concepção, pois a mesma irá inspirar no século XVIII a emergência de uma importante vertente do iluminismo e muitas das nossas ideias contemporâneas.
A oposição a estas ideias é frequentemente associada a Sócrates (filho de uma parteira), Platão, mas também a Aristóteles (filho de um médico). Como demonstrou Jaeger, a sua fonte de inspiração comum foi a medicina do tempo. A medicina hipocrática forneceu-lhes alguns conceitos científicos que cada um a seu modo utilizou de forma magistral.
O primeiro conceito foi o de que o homem é em grande parte produto das condições naturais em que nasce e se desenvolve. Hipócrates recomenda aos aprendizes da arte: “Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar há-de ter presente as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à sua essência específica e quanto às suas mudanças”. A partir desta análise, o médico, estaria apto a deduzir as enfermidades de uma dada população. A ordem do Todo determina o estado de cada coisa singular, determinando-lhe a sua natureza.
O segundo foi o da harmonia global que reina entre todas as coisas. As enfermidades para Hipocrates não são mais do que as consequências resultantes da sua alteração da ordem estabelecida.
O terceiro conceito essencial foi o da norma que deve, em cada caso, ser seguida para que o equilíbrio não se rompa. Afim de manter o equilíbrio que permite a saúde, Dócles, na sua obra Da Dieta, estabelece um vasto conjunto de prescrições que cada um deve cumprir desde que acorda.
A concepção natureza humana é assim definida de forma estática, para o equilibrio da qual é necessário a manutenção da ordem estabelecida.
Com base nestes conceitos, Sócrates, Platão e Aristóteles, defenderão cada um a seu modo, a diversidade da natureza intrínseca dos homens. Platão dirigindo-se aos cidadãos escreve: “Cidadãos, deveremos dizer-lhes segundo a nossa fábula, sois todos irmãos, e no entanto Deus vos constituiu de modo muito diferente. Alguns de vós têm o poder de comandar, e na composição destes ele fez entrar o ouro; daí o facto de terem também direito às maiores honras. Outros foram feitos de prata, para serem auxiliares. E outros ainda, que são os lavradores e os artesãos, foram feitos de cobre e ferro; e essas espécies geralmente se conservarão em seus filhos” ( A República). Aristóteles, na sua obra Política, demonstra como as tendências, capacidades e aptidões humanas são definidas pela região de origem, sendo todavia de natureza desigual: “Desde o nascimento, alguns estão destinados a mandar e outros a serem mandados...” . O mesmo é dizer uns quando nascem estão destinados a serem senhores, outros escravos (Politica).
A definição da norma é essencial para manter a harmonia do todo, a integração das suas partes, e excluir tudo o que a possa perturbar. Etimológicamente, “norma” é uma palavra latina que significa esquadro. Rapidamente passou a significar o que deve ser. O estado normal indicará o estado habitual e ao mesmo tempo o estado ideal. A ameaça à norma está na anomalia, do grego Ómolos que significa desigual, escabroso. O Ómolos é o irregular, o rugoso, o sem lei, o sem valor (Ch. Descamps). Para manter a Ordem no Cosmos é necessário excluir todos os Ómolos. Compreende-se assim, a razão pela qual, na Antiguidade, a matança de crianças deficientes era encarada como um procedimento natural. Elas não tinham lugar na Ordem estabelecida. 2.
As Culpas da
Natureza Monstruosa Da Antiguidade à Renascença o conhecimento do mundo vivo pouco mudou. O que se alterou foram os critérios de exclusão. Durante o Renascimento, na natureza, tudo é possível, porque o poder criador de Deus não têm limites. “Todos os possíveis encarados pela imaginação humana eram realizados pela vontade divina” (François Jacob, A Lógica da Vida). Nada acontece ao acaso, tudo tem uma causa natural. Quando uma rapariga nasce com duas cabeças ou quando um homem tem, à guisa de cabelos “pequenas serpentes vivas”, escreve Montaigne, é porque há excesso de semente. Quando o homem nasce sem braço ou sem cabeça é, ao contrário, por insuficiência de semente. Mas se uma mulher deita ao mundo um filho com cabeça de cão, a culpa não é da natureza, que “faz sempre o seu semelhante”, mas da mulher, que se entregou a actos repreensíveis com um animal (Ensaios). Estes seres são assim reprovados não por serem monstruosos, mas porque testemunham comportamentos pecaminosos. A sua exclusão adquire a dimensão de uma reparação moral. É em nome da moralidade que devem ser excluídos. 3.
A Hierarquia dos Seres Até ao final do século XVIII, como assinala François Jacob, continuou a não existir uma fronteira nítida entre os seres e as coisas. O ser vivo prolongava-se sem hiato até ao inanimado. A profunda alteração deu-se na classificação dos seres segundo categorias rigidamente determinadas. Numa longa cadeia hierarquica tudo tem um lugar determinado, uma categoria ou uma espécie definida. A ciência moderna procurou determinar com rigor o lugar para os diferentes Ómolos. Lineu, no seu Systema Naturae, incluiu a espécie humana no reino animal, sob uma única designação específica – Homo sapiens – e dividiu-a em seis raças, seguindo um critério em grande parte geográfico: europeia, amerindeana, asiática, africana, selvagem e monstruosa. Esta última raça, como escreve Clara Queiroz, sobrepunha-se um pouco a todas a outras por ser constituída por indivíduos com malformações passíveis de ocorrer em qualquer região. Estes indivíduos adquiriam assim um estatuto à parte, num sistema de classificação do seres vivos, embora não possam ser considerados propriamente humanos. As semelhanças físicas com outros homens não bastam.
No topo da hierarquia dos seres humanos surge a raça branca. Blumenbach, em 1775, o fundador da antropologia, sustenta que esta raça é a mais primitiva e nobre, dela derivando todas as outras por um processo de degenerescência. Buffon, na sua História Natural, partilhará deste ponto de vista.
Mas não basta ser branco, advertiu Réne Descartes, é preciso também não ser um louco, cujo “cérebro está perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bílis” (Meditações Metafísicas). Num universo organizado, o lugar dos loucos, não é na rua, mas atrás dos muros do manicómio. Principiava desta forma o modelo da segregação. Na sequência de uma vasta acção policial, em 1657, o hospital central de Paris, acolhe numa só manhã cerca de seis mil pobres, loucos, desempregados, viciosos, profanadores. Os doidos ocupam o lugar dos leprosos. Na hierarquia dos seres, os loucos são uma ameaça à razão triunfante da modernidade. 3.1.
A Escola Excludente A escola até ao final do século XVIII não admitia no seu seio todos aqueles que estavam excluídos da ordem social. Poderia ser de outra forma? Claro que não. Os únicos que mereceram algum cuidado forma os orfãos e as crianças abandonadas. Era facilmente postas a render, ao serviço da Igreja ou na obra de povoamento das colónias pelo Estado. Em Portugal esta utilização está amplamente documentada. Por toda a Europa foram raras as tentativas de educação dos deficientes. Entre as primeiras conta-se a levada a cabo pelo frade Pedro Ponce de León, em meados do século XVI, destinada à educação de 12 crianças surdas. É preciso esperar pelo século XVIII para que uma nova visão da deficiência surja. Diderot teve neste aspecto um papel importante, embora pouco divulgado. Em 1749 publica a “Carta sobre os Cegos para Uso dos que Vêem”, e dois anos depois, a “Carta sobre os Surdos e Mudos para Uso dos que Ouvem e que Falam”. Cegos, surdos-mudos, revelam nesta espécie de manifesto capacidades insuspeitas. É neste contexto que o abade Charles Michel de L`Epice criou uma escola pública para surdos (1775), e Velentin Hauvy fundou um Instituto para crianças cegas (1784). No ensino como na sociedade, as diferenças genéticas reais e imaginárias entre os homens, continuavam a ser um factor de exclusão social sobre o qual se alicerçavam todas as formas de desigualdade. Não é de admirar a raridade destas iniciativas de apoio aos deficientes. 4.
A Humana
Natureza Humana Na segunda metade do século XVIII, assistiu-se a um verdadeiro cataclismo nas concepções vigentes sobre a natureza humana. A concepção do universo estático começa a ser substituída por a ideia de um universo em evolução, sendo o homem encarado como um produto da mesma. Os “sofistas” do tempo, os enciclopedistas, demonstraram que o que diferenciava os homens eram as convenções sociais e a educação. As suas ideias acabaram por incendiar o mundo
Na Revolução Americana e depois na Revolução Francesa proclama-se a igualdade de direitos de todos os homens (1776 e 1789). Ambas as Declarações assentam na pressuposição da universalidade da natureza humana e dos seus valores. A Natureza de cada homem reporta-se a uma Humanidade ideal que está em todos, mas em ninguém em particular. A partir daqui este ideal, torna-se numa referência fundamental que orienta inúmeros movimentos políticos e educativos em todo o mundo.
Esta ambígua igualdade formal, que num primeiro momento interessa á ascensão da burguesia, torna-se perigosa. A comunidade científica procura então “separar as faixas de indivíduos que se revelam um pouco menos iguais, e a confirmar a sua diversidade para os poder excluir dum jogo em que não há lugar para eles” (F. Ongaro Basaglia ).
Malthus, na segunda edição do Essay on the Principle of Population (1803), confirma a necessidade da exclusão social devido à carência de recursos para todos os homens: “O homem que nasce num mundo já possuído pelos outros, quando não pode obter os meios de subsistência dos pais sobre quais pode ter justas pretensões, e se a sociedade não quer o seu trabalho, não se pode arrogar de nenhum direito à mínima porção de alimento e não tem nenhum motivo para estar onde está. Não há no grande banquete da natureza um lugar desocupado para ele”. Resta-lhe apenas a exclusão social, e a eventual compaixão dos que têm assento no banquete. Sir Francis Galton, primo de Darwin, em Hereditary Genius (1869) esforçou-se por demonstrar com base em estatísticas e em estudos biológicos, como a inteligência e a estupidez eram hereditárias. Daqui retirou a conclusão que deviam ser adoptadas medidas para favorecer as raças e as famílias mais dotadas, mas também para diminuírem as taxas de reprodução dos que se encontram no extremo inferior da escala social. Estas ideias não tardaram a inspirar muitos outros cientistas e movimentos políticos.
Estas medidas não se enquadravam todavia no espírito da nova economia capitalista. A exclusão representava um enorme desperdício de recursos. Por isso mesmo foi rapidamente substituída por um sistema de segregações. Neste, todos os marginais, raças inferiores e até deficientes, sem perderem o seu estatuto, são postos aos serviço do interesse geral, que neste aspecto coincidia com os grandes interesses particulares. A Casa Pia de Lisboa, fundada 1780, por exemplo, recolhe todo o tipo de marginais, como prostitutas, vagabundos e crianças abandonadas, pondo-as a render nas oficinas do Estado. Das prisões saem para as obras públicas legiões de trabalhadores. Os Asilos e Orfanatos, onde se verificam elevadas taxas de mortalidade, são instituições em tudo menos ociosas. O lema da burguesia que só o trabalho regenera os corpos viciosos, inspira todas estas instituições.
Michel Foucault, demonstrou que a partir de 1820, as prisões deixaram de ser vistas como simples depósitos de criminosos, para serem encaradas como fábricas de delinquentes úteis ao sistema. Delas saíam as operárias do prazer para alimentarem os prostíbulos, mas também grupos que eram utilizados contra os operários, nas lutas políticas e sociais, em missões de vigilância, de infiltração para impedir ou romper greves, etc. “A partir do momento que alguém entrava na prisão, punha-se em funcionamento um mecanismo que o tornava infame; e quando de lá saía, nada mais podia fazer que tornar -se delinquente. Caía necessariamente no sistema que dele fazia um proxeneta, num polícia ou um informador. A prisão profissionalizava”.
As Declarações igualitaristas de finais do século XVIII são agora reinterpretadas á luz da nova política de segregação. John M. Daniel, em 1864, confirma que “segundo os advogados científicos da diversidade das raças, os Negros não são homens no sentido em que este termo é utilizado na Declaração da Independência”. A partir daí somam-se as “provas científicas” desta diversidade que fundamenta todas as segregações. Entre nós, Júlio de Mattos, no prefácio à sua História Natural (1880),hierarquiza as raças humanas, colocando no topo a raça branca, e no extremo oposto os aborígenes australianos. Ernest Haeckel, em Maravilhas da Vida (1904), afirma que sob o ponto de vista psicológico, por exemplo, os australianos, são mais vizinhos dos mamíferos (macacos, cães) do que dos europeus. Um número crescente de reputados cientistas não se cansava de demonstrar, não apenas a falsidade da igualdade das raças, mas também os perigos de semelhantes ideias. Entre nós, atingiram grande sucesso as obras de Gustavo le Bon, uma verdadeira autoridade na matéria. Na sua obra “Leis Psicológicas da Evolução dos Povos” (1910), confirma a invariabilidade mental dos caracteres rácicos: “Cada povo possui uma constituição mental fixa, como os seus caracteres anatómicos, constituição de que derivam os sentimentos, os pensamentos, as instituições, as crenças e as artes desse povo”. Uns pertencem a raças superiores e outros inferiores. Baseado em estudos científicos, condena o cruzamento das raças pela degenerescência que provoca, aplaudindo, entre outras coisas, o extermínio de negros nos EUA quando estes se revoltam. Lamenta todavia a impossibilidade de não poderem ser expulsos todos os chineses, devido às carências de mão de obra que tal medida iria provocar. Tudo em nome da pureza da raça superior.
A antropologia, a biologia e outras ciências da vida, irão sistematizar as diferenças entre os homens, conduzindo à célebre escala quantitativa da humanidade, de Frintz Lenz, publicada em Human Heredity (1931). Não foi apenas na Alemanha Nazi que estas ideias foram perfilhadas, mas foi lá como em nenhum outro Estado que deram lugar a uma política sistemática de extermínio. 4.1. Escola Segregadora Desde o início do século XIX até aos anos 60 que os deficientes viveram sob signo da segregação, mas nem todos eram tratados da mesma forma. O surdos-mudos e os cegos foram mais rapidamente integrados no sistema produtivo. Os deficientes mentais ficaram muitíssimo mais tempo à porta das instituições educativas. Em todo o caso, a integração continuava a ser sinónimo de segregação.
Em Portugal a primeira instituição destinada a deficientes foi o Instituto de Surdos-Mudos e Cegos, criado em 1822, por iniciativa de José António Freitas Rego. Lentamente foram surgindo, à margem das escolas regulares, outras instituições com funções assistências e educativas destinadas a este tipo de deficientes
Quanto à educação dos deficientes mentais os caminhos foram mais tortuosos. Em 1871 será criada a primeira Casa de Detenção e Correcção para menores delinquentes “desobedientes e incorrigíveis”, e apenas em 1911, o médico António Aurélio da Costa Ferreira inicia, de forma sistemática, a obra de assistência aos anormais mentais.
A primeira iniciativa assumida pelo Estado na educação das crianças anormais, ocorreu em 1922, quando o Instituto Médico-Pedagógico da Casa Pia de Lisboa passou para a Tutela do Ministério da Instrução Pública, e recebe a designação de Instituto Aurélio da Costa Ferreira.
É preciso esperar pelo fim da segunda Guerra Mundial para ocorrerem novas medidas a favor dos deficientes mentais. O Dec.-Lei 35.801, de 3/8/1946, permite a criação de “classes especiais de crianças anormais” anexas aos estabelecimentos de ensino primário, sob a orientação Instituto Aurélio da Costa Ferreira. O número destas classes especiais não param de crescer: Tiveram inicio em 1947. em 1953 eram já 31, atingindo as 72 em 1962 ( José António Lopes Santos, 1999).
Paralelamente outras instituições foram surgindo para apoio assistêncial e educativo aos deficientes mentais, promovidas pelas mais diversas entidades e com as mais dispares finalidades.
A intervenção do Estado no apoio aos deficientes é reforçada nos anos 60. A sociedade portuguesa mostrava-se então muito sensibilizada para esta questão, devido em grande parte, ao aumento do número de deficientes provocado pela guerra colonial. Seja como for, em 1964, é criado o Serviço de Educação de Deficientes, no âmbito do Instituto de Assistência a Menores (da Direcção-Geral da Saúde e Assistência). Entre 1965 e 1970 organizou 8 escolas especiais para deficientes visuais, 10 para deficientes auditivos e 11 para deficientes mentais. Algo parecia estar efectivamente a mudar.
5.
Integrar na
Desigualdade A emergência a independência das antigas colónias, após a II Guerra Mundial, trouxe consigo um discurso de maior abertura às diferenças raciais. A exclusão racial desapareceu para dar lugar ao discurso da integração das raças. O árabe de origem argelino tornou-se subitamente francês. O preto moçambicano, guineense ou angolano, tornou-se português. Por todo o lado o conceito de Natureza Humana tornou-se mais permeável às diferenças.
A penúria de mão-de-obra provocada pela Guerra, deixa o “mundo ocidental” numa situação desfavorável para competir com os avanços tecnológicos do “Bloco Comunista”. Inúmeros estudos, nomeadamente conduzidos pela OCDE, FMI e o Banco Mundial revela que a “industria do ensino” revela uma espantosa improdutividade, desperdiçando um enorme potencial humano devido a preconceitos sociais, organização e métodos de ensino, etc. Até à crise económica dos anos 70, a teoria do “capital humano” inspirou muitos dos esforços integrativos no ensino.
Edgar Morin, numa obra que marcou uma época (O Paradigma Perdido: A Natureza Humana, 1973), afirmava que a definição do homem não podia continuar a assentar apenas num único dos seus aspectos. “Precisamos de ligar o homem razoável (sapiens) ao homem louco (demens), ao homem produtor, ao homem técnico....”. O homem é só apreensível na sua diversidade e hipercomplexidade. A integração estava na ordem do dia em termos filosóficos.
Mas nada mais ingénuo do que pensar que todas as diferenças subitamente havia desaparecido. Nos EUA Jurgen Ruesch, em 1969, interrogava-se sobre quantos eram os socialmente inaptos. Só neste país, no auge da sua prosperidade económica, constatava que a maioria da sua população, estava literalmente afastada do processo produtivo. Apenas uma minoria intervinha na criação das riquezas e na sua acumulação. A maioria apenas participava no seu consumo, através dos múltiplos mecanismos assistênciais. Este era o mecanismo de integração que se havia criado.
Ultrapassando as diferenças epidérmicas, os biólogos concentraram-se, a partir dos anos 60, no DNA (ácido desoxirribonucleico). À acção de um ou mais genes, passaram a ser atribuídas a responsabilidade por manifestações tão diversas como agressividade, homossexualidade, criminalidade, etc. O discurso científico procurou fundamentar a diferença ao nível molecular. Externamente todos revelamos certas semelhanças, mas a genética molécular descobriu abismos entre os homens. Arthur Jensen, em 1969, após inúmeros estudos demonstrou que cerca de 80% do quociente de inteligência era atribuível a factores genéticos e só 20% à componente ambiental. O discurso da diferenciação genética voltava. Ultrapassando o nível molecular, os etnologos, neurobiologistas, passaram a falar de predisposições, isto é, um conjunto de factores de natureza biológica que conduzem o indivíduo a assumir certas atitudes em vez de outras. Henri Laborit, neste campo fez escola, ao descobrir três cérebros no cérebro humano. A predominância de um ou outro, conduz o homem naturalmente a certas predisposições comportamentais. Todas estas teorias transformam o discurso da exclusão, no discurso da auto-exclusão. Certos indivíduos, respondendo a predisposições naturais, auto-excluem-se da sociedade, transformando em inadaptados, marginais, etc. As elites dominantes podiam finalmente dormir descansadas: o princípio da desigualdade genética estava reposto. 5.1. Escola Integrativa Em finais dos anos 60, nas escolas portuguesas começam as primeiras experiências de integração de deficientes em estabelecimentos regulares de ensino.
As declarações de princípios e a publicação de legislação em muitos países iam no sentido de acabar com o profundo isolamento a que até aí os deficientes haviam estado votados- particularmente os deficientes mentais -, mas também criar-lhes condições que lhes permitissem o acesso à vida, separando-os o menos possível da sociedade. Reafirmou-se também o direito das crianças com necessidades educativas especiais, a terem uma educação adaptada e fornecida em escolas regulares (José António Lopes Santos, 1999). As escolas tinham que se adaptar às crianças e não elas às escolas.
Em Portugal este processo de integração terá sido feito em duas etapas fundamentais: Numa primeira fase entre 1973/74 e 1982/83, procedeu-se à reorganização dos serviços e criaram-se estruturas regionais, publicou-se importante legislação sobre o assunto, mas em termos de resultados, os passos dados foram modestos. Na segunda fase, entre 1983/84 e 1994, o sistema expandiu-se e consolidou-se o “ensino integrado”, assegurado por equipas de ensino especial espalhadas pelo país.
O grande salto qualitativo deu-se, só a partir de 1984, quando se alterou o próprio conceito de crianças com necessidades educativas especiais. Estas crianças deixam de ser apenas os cegos, os surdos-mudos, etc., para serem também todas aquelas que no seu percurso escolar são marcadas pelo insucesso. Assiste-se a partir de então ao lançamento de diversas iniciativas destinadas a estas crianças com dificuldades educativas. Em 1987, é criado o PIPSE- Programa Interministerial para a Promoção do Sucesso Escolar. Pouco anos depois, a figura das chamadas “escolas de intervenção prioritária”, abrangendo todas as escolas que “sejam frequentadas por um número significativo de crianças com dificuldades de aprendizagem, inadaptadas ou portadoras de deficiência”. Outras iniciativas prosseguiram nesta mesma direcção. 6.
A Grande
Inclusão Os anos oitenta foram marcados pela globalização dos capitais financeiros, mas também das comunicações. Aparentemente também se mundializou a informação, mas não o conhecimento que contínua a ser coisa rara. As diversas economias foram todas incluídas numa vasta economia mundial comandada pelas grandes multinacionais. Os ricos nunca foram tão ricos e a miséria dos pobres nunca foi tão exposta.
Os países mais ricos necessitam dos pobres para lhes sugarem as matérias primas, venderem produtos, mas também para o fornecimento de mão-de-obra. O sistema passou a ser gerido a uma escala e numa lógica efectivamente global.
A nova economia tornou-se hegemónica, tem-se revelando capaz de tudo rentabilizar, inclusive as actividades assistenciais. As ajudas internacionais, os programas de apoio aos excluídos revelam-se hoje investimentos estratégicos em termos económicos. Depois da “Queda do Muro de Berlim”, o Capitalismo passa a ser apresentado como a única alternativa realista, mesmo para os que ainda sem mantém à margem. O objectivo é a Inclusão total. 6.1. Escola Inclusiva A Declaração de Salamanca consagra um conjunto de princípios, que reflectem as novas políticas educativas, consagrando os seguintes princípios: a) O direito à educação é independente das diferenças individuais; b) as necessidades educativas especiais não abrangem apenas algumas crianças com problemas, mas todas as que possuem dificuldades escolares; c) a escola é que deve adaptar–se às especificidades dos alunos, e não o contrário; d) o ensino deve ser diversificado e realizado num espaço comum a todas as crianças. É neste sentido que o Prof. Doutor David Rodrigues afirma que a escola inclusiva pressupõe o modelo de pertença a uma instituição, a uma casa comum. Passados quatro anos, o debate contínua. Pouco mais se avançou. 7.
Conclusão A educação nunca deixou de estar intimamente ligada a motivações de natureza económica, política, religiosa ou mesmo filosófica. Desligar a educação deste campo de fundo é ignorar as causas profundas das suas mudanças. A história do ensino para deficientes é, neste capítulo, um dos exemplos mais ilustrativos do que acabamos de afirmar.
A exclusão tem predominado sobre a integração, e mesmo quando se fala desta última, é frequentemente para iludir as multiplas formas de segregação social.
As escolas
inclusivas podem tornar-se em mais uma panaceia. Elas enfrentam já hoje alguns
sérios problemas. Um deles é a difícil conciliação entre a necessidade de
atenderem à diversidade dos alunos, sem diminuírem a qualidade do ensino. Um
outro é o da própria reacção dos pais e alunos ditos normais, para já não falar
dos professores. A aceitação do Outro como um igual nunca foi pacífica. Carlos Fontes
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