Isidorus Hispalensis, Isidoro de Sevilha, Santo Isidoro

O Círculo de Estudos Isidorus Hispalensis, fundado em 2022 na freguesia de Santo Isidoro (Mafra) tem como objectivo divulgar e reflectir sobre a obra de isidoro de Sevilha, em particular sobre a sua influência na cultura portuguesa.

Estatueta de Santo Isidoro da autoria de José Cardoso Queiróz

Obras

Etimologias ou Origens, a sua mais célebre obra, constitui a maior enciclopédia da Idade Média. Isidoro estava convencido que a natureza primitiva, a essência das coisas se reconhece pela etimologia (origem) dos nomes que as designam. Quando não se conhece a etimologia de nome, sempre se pode inventar o que mais lhe convém. É portanto a partir da definição de cada coisa que a obra se estrutura. Para termos uma ideia da complexidade desta obra vamos apenas indicar o conteúdo de cada um dos seus livros: I (gramática), II (retórica e dialéctica), III (as quatro disciplinas da matemática: aritmética, geometria, música e astronomia), IV (Medicina), V (leis e tempos), VI (livros e ofícios eclesiásticos), VII (Deus, os anjos e as ordens dos fiéis), VIII (Igreja e seitas), IX (língua, povos, reinos, milícia, cidades e parentescos), X (vocábulos), XI (homem e monstros), XII (animais), XIII (o mundo e as suas partes), XIV (a terra), XV (edifícios e campos), XVI (pedras e metais), XVII (agricultura), XVIII (guerra e jogos), XIX (provisões e instrumentos domésticos). A partir da origem de cada palavra (etimologia) descreve e sistematiza, como dissemos, o conhecimento adquirido.

A cosmologia é um tema central na obra de Isidoro de Sevilha. Apontam-se várias razões para este interesse: os problemas astronómicos decorrentes da fixação do calendário religioso, em particular da Páscoa; a influência atribuída aos astros na saúde e na prática médica; a procura da explicação para o eclipse total de 613; e acima destas e de outras questões, a compreensão da posição dos seres humanos na obra de Deus. Tudo tem nela um lugar preciso e uma razão de ser. Não há acasos. A sua concepção do universo concilia os conhecimentos da Antiguidade Clássica com o Antigo Testamento. O universo é concebido como uma grande esfera que tem a terra no centro. É um disco plano rodeado por um oceano. Está dividida em três partes, tantos quantos os filhos de Noé que depois do dilúvio foram enviados para as povoar: Sem (Ásia), Jafé ou Jafeth (Europa) e Cam ou Cham (África). A representação do mundo nas Etimologias variou bastante ao longo dos séculos. Alguns elementos tenderam contudo a manter-se: a Ásia situa-se na parte superior, a Europa à esquerda e a África à direita, correspondendo a cada uma diferenças climáticas. Os mapas feitos na Península Ibérica destacam o mar Mediterrâneo e os rios Nilo e o Tanis ou Tanais (rio Dom). Esta partição da terra não deixou de gerar certos preconceitos, nomeadamente sobre os descendentes de Cam (Cham), filho desavindo de Noé e povoador de África: os africanos, os fenícios e dez outros povos. Na dança de nomes, são mais os que mudam do que aqueles que se conservam, esta associação a Cam foi evocada para legitimar a escravatura dos "negros", uma palavra que em grego se diz "maûros", isto é, "mouros"(Etimologias, Livro IX, 2,122). Neste universo existe uma rigorosa hierarquia de seres, elementos e lugares. Cada um tem a sua função e definição: "Os anjos, por exemplo, recebem este nome porque são enviados desde o céu para anunciar mensagens aos homens. Anjo é um vocábulo grego; em latim diz-se "mensageiro" (Etimologias, Livro VII, 5,5.)

A partir do século XIV começou a difundir-se o mapa do mundo de Claudio Ptolomeu, o de Isidoro continuou todavia a ser reproduzido. A diferença entre eles é enorme. Temos, por isso, que nos questionar sobre o significado que então se atribuía ao mapa isidoriano, por exemplo, como o impresso em 1472 por Günther Zainer: era um mapa do mundo ou uma representação simbólica?

Perda de Influência?

Muitos afirmam que a partir do século XII diminuiu a influência de Isidoro de Sevilha, o que não corresponde à verdade. O número de manuscritos das suas obras não diminuiu, muito pelo contrário. No fim da Idade Média a dimensão espiritual e ascética das suas Sententiae (Sentenças) e das Sinomyma (Sinónimos) continuava bem viva inspirando o mundo monástico. É verdade que a dimensão cientifica das Etimologias e De Natura Rerum (Coisas da Natureza) foram perdendo terreno face ao avanço das novas descobertas científicas e geográficas. A sua concepção do cosmos - fechado e hierarquizado, tendo a Terra no centro -, foi sendo lentamente substituída por uma outra de matriz atomista, assente num universo infinito e homogéneo. A sua visão enciclopedista resistiu e frutificou pelo seu carácter operativo de organização do conhecimento.

Podemos dizer que a sistematização do conhecimento, ainda que sem grande fundamentação teórica, constitui a sua primeira preocupação. A segunda foi fixar o novo léxico do poder político, étnico e religioso da monarquia imperial visigoda. Nas suas obras, os termos, factos e pormenores foram cuidadosamente escolhidos e definidos com este propósito. A terceira, acrescentamos, foi combater a ignorância. Como escreve:

“Nada há melhor que a sabedoria nem mais doce que a prudência nem mais suave que a ciência nem pior que a tolice nem mais corrompido que a parvoíce nem mais vergonhoso que a ignorância. A ignorância é a mãe de todos os erros e o alimento dos vícios. A ignorância ou falta de cultura ainda é pior que o pecado, pois não dá conta do que é pecado nem sabe quando comete uma falta. Muitos pecam por falta de conhecimento. O homem sem juízo peca vezes sem conta. A pessoa sem cultura deixa-se enganar com facilidade. Quem é tolo, escorrega bem depressa no vício. Mas a pessoa prudente apercebe-se logo da armadilha e dá mais depressa conta dos enganos. É só pela sabedoria que somos capazes de evitar o que nos prejudica”.

Apesar desta crença nas virtudes do saber, não deixa de advertir que de nada serve saber se o mesmo não for partilhado. O que cultiva o saber não o deve usar para se vangloriar, mas para dar o exemplo de prudência, humildade e dedicação ao próprio saber.

 

Presença nas Bibliotecas Monásticas Portuguesas

As suas obras até ao século XVI eram a base da cultura do tempo. Não admira que desde o início de Portugal, como reino independente, as mesmas estivessem presentes nas nossas bibliotecas medievais, nomeadamente as Etimologias. Antes da independência sabemos que Mumadona, condessa do condado portucalense, fez a doação de um exemplar desta obra ao Mosteiro de Guimarães (959), incluindo da sua Regra monástica. Na Sé Coimbra havia um exemplar no século XI. No século XII havia outro na Sé de Braga. Chegaram até nós dois exemplares, um do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (Porto. BPMP, Sta Cruz, ms. 21) e outro proveniente do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça (Lisboa. BNP, Alc. 446). É provável que no Mosteiro de S. Vicente de Fora também existisse um exemplar desta enciclopédia, à semelhança do que se verificava noutros mosteiros, como o de Leça ou o do Bouro possuíam também um exemplar. Na Alta Idade Média, as Etimologias serviam para o ensino do trivium e quatrivium, e eram muito utilizadas pelos monges para esclarecer termos antigos com que se confrontavam nos seus estudos. A difusão da imprensa (século XV) não diminuiu o interesse pelas suas obras. Entre 1470 e 1529 conhecem-se das Etimologias pelo menos 10 edições.

Para além das Etimologias, outras obras de grande difusão de Isidoro de Sevilha estavam igualmente presentes nas nossas bibliotecas medievais. A descoberta de alguns fragmentos das mesmas tem-nos permitido alargar a sua extensão temática. Como é o caso das colecções conciliares indispensáveis para regular a vida da Igreja. A mais importante colecção na Península Ibérica foi a sua Hispana de que existe uma preciosa tradução em árabe, com notas marginais em latim, de que restaram algumas folhas na Biblioteca da Sé de Coimbra .

Para termos uma visão mais ampla destas obras em território português, seleccionámos exemplos de duas bibliotecas medievais e de uma outra mais recente, a do Convento de Mafra.

Manuscritos no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça: Três livros de Sentenças. (Alc.195, ff.: 1v-109 v); Sentenças (Alc. 416, ff.: 1-69, séc. XIII); Fé Católica contra os Judeus (Alc.375, ff.: 1-204 v); Do Universo ou Sobre a Natureza das Coisas (Alc.446, ff.: 205-220); Do Universo… (Alc. 375, ff.: 164-167, incompleto); Diálogo entre a Alma e a Razão (Alc.416, ff.: 70v-80v); Sobre Homens Ilustres, cap. 27 (Alc. 349); Liber quaestionum in Vetus Testamentum (Alc.136, ff.: 1-69 v) ; Questiones in Vetus Testamentum (Alc. 194, ff.: 7-161 v.); Epistolae (frag.) (331, fls. de guarda, correspondência com Braulio de Saragoça); cinco cartas a Braulio de Saragoça (Alc.446, ff.:1-3); De Quatuor Virtutibus (Alc. 248, ff.: 210v.- 214, séc. XII), resumos.

Manuscritos no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra: De fide Catholica contra Judaeos (datado de 1191). (vide: Alc.375); Sententiarum libri III De sumo bono (vide: Alc.195); Synonimorum lamentatione animae peccatricis libri II (séc. XIII) (vide: Alc.416).

Na Biblioteca do Convento de Mafra podemos consultar dois exemplares impressas das suas obras:
- Isidori Hispalensis episcopi Sententiarum libri 3. Emendati, et notis illustrati per Garsiam Loaysa. apud Io. Baptistam Beuilaquam, 1593. (Sentenças em três livros)

- Divi Isidori Hispalensis Episcopi Opera. Philippi Secundi Catholici Regy jussu e vestustis exemplaribus emendata. Divi Isidori Hispalensis Episcopi Opera.1599. Madriti ex Typographia Regia. 1597-1599 (Obra Completa).
Exemplar das obras completas na Biblioteca do Convento de Mafra

Na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, Aires Augusto Nascimento identificou um manuscrito com as Etimologias completas, anotado por Alvar Gómez de Castro, professor na Universidade de Alcalá de Henares que colaborou na edição de 1599 (Códice de Ajuda 44-XII-18 e 197), que o Conde da Ericeira trouxe para Portugal no século XVIII .

Obras completas de Isidoro de Sevilha datadas dos séculos XVI e XVII podem ser encontradas em Lisboa (BN Portugal, Academia das Ciências, Universidade de Lisboa ou na FCG), Porto (BPMP), Coimbra (Universidade), Braga, Évora e em Ponta Delgada (Arquivo-Biblioteca), o que atesta a sua continua leitura.

A sua influência foi grande entre os pensadores portugueses. Santo António (século XIII) reflecte-o nos seus Sermões, no jogo complexo e ambíguo de associações simbólicas, em que parte muitas vezes de uma base etimológica de inspiração isidoriana. No Horto do Esposo, obra anónima do século XIV, existente na Biblioteca de Alcobaça, lembra-se a experiência escolar de Isidoro de Sevilha e o seu amor à ciência, para se evocar o valor do estudo e da persistência na acção. No século XVI, Alvaro Gomes, quando escreve sobre a divindade de Jesus, a argumentação a que recorre é a de Isidoro de Sevilha em Adversus hebraeos. Não é exagerado afirmar que o método etimológico isidoriano deixou marcas profundas na forma como a ortografia da língua portuguesa foi trabalhada desde o século XVI ao princípio do século XX, onde foi evidente uma aproximação à etimologia. A polémica que gerou o seu afastamento, não sendo nova, ressurgiu recentemente com a questão do novo acordo ortográfico. A origem das palavras (etimologia) foi de novo secundarizada em favor da sua simplificação, funcionalidade e regularização de usos. Muitos outros exemplos poderiam ser citados para demonstrar esta influência de Isidoro de Sevilha na cultura em Portugal.

Obras em Português. A relação que um crente estabelece com o seu santo de afeição transcende a dimensão estritamente intelectual. Não admira, por isso, que as suas obras sejam, por vezes ignoradas. Santo António de Lisboa (Fernando Martins,1191-1231), por exemplo, foi professor universitário de teologia em Pádua, consagrado como primeiro Doutor da Igreja, a sua obra (Sermões e Vitae) só foi traduzida para português em 1970 e 1980. No entanto, nada disso impediu a difusão do seu culto. O Santo Taumaturgo, por excelência, eclipsou o santo intelectual. Apesar da celebrada sabedoria e santidade de Isidoro de Sevilha apenas descobrimos uma única obra traduzida em português de 2003, a já citada Infelicidade e Esperança (Synonyma de Lamentatione "Animae Peccatricis”) (Sinónimos).

 

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